O perfil de Jair Bolsonaro presidente da República ainda não está totalmente nítido para os brasileiros e a impressão é de que teremos um governo com sobressaltos constantes, devido ao temperamento mercurial do candidato do PSL. Ficou evidenciado, porém, que o presidente eleito tem a humildade de recuar em excessos eventualmente cometidos, o que é um sinal vagamente alentador. Fica patente que o futuro presidente é perfeitamente enquadrável à dinâmica das coisas e às mutações impostas pela sociedade. Um chefe de Estado ou de governo pode muito mas não pode tudo.
Ainda vai levar um tempo para discutir-se a volta do poder militar disfarçado, epíteto que se atribui à Era Bolsonaro por causa das suas ligações com o Exército, onde, no entanto, não ascendeu na hierarquia, situando-se entre o baixo clero das Forças Armadas e a oficialidade média. Ataques dirigidos à própria mídia e recados para oportunistas de plantão que querem espaço no governo aprofundam a ideia de que Bolsonaro agirá como um mini-ditador. Algumas publicações chegam a insinuar que essas manifestações do presidente sinalizam que ele ainda não desceu do palanque, ou seja, não abandonou completamente o figurino de candidato. O fato é que Bolsonaro é uma caixa preta porque, ao mesmo tempo em que brada ameaças, recua de propostas desastrosas, ameniza o tom do discurso, prega o diálogo e reconhece erros.
É possível que Bolsonaro esteja se testando no papel que enfeixará a partir de janeiro, hipótese que não era cogitada pelos analistas políticos em geral e por parcelas ponderáveis da sociedade brasileira, sem falar na mídia internacional, ainda alvoroçada com a perspectiva de um retrocesso embutido na eleição do capitão do Exército. Chefes militares, enquanto isso, procuram desvincular o presidente de maiores laços com a instituição, do ponto de vista de ser representante legítimo dela, numa precaução diante da possibilidade de o futuro governo ser um rotundo fiasco, desgastando a todos indistintamente. Ao lembrar a mudança de tom verificado, a revista Veja, em editorial, lembra que aos candidatos concede-se uma licença retórica mais ampla, enquanto, dos eleitos, ainda que não tenham tomado posse, cobra-se responsabilidade pelo impacto real do que diz. Foi assim que o Egito cancelou a viagem do chanceler brasileiro em protesto contra a mudança da embaixada do Brasil em Israel, e a China alertou Bolsonaro de que seria um risco hostilizar o país, alinhando-se acriticamente à política do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
No plano pragmático, não é dado ao presidente eleito o direito de ignorar que o Brasil possui um déficit no seu comércio com Israel, que era estimado em 700 milhões de dólares até outubro, enquanto possui um superávit de 1,5 bilhão de dólares com o Egito. Com a China, hoje nosso principal parceiro comercial, a situação ainda é mais eloquente: o superávit brasileiro, até outubro, já passava de 23 bilhões de dólares. É esse pragmatismo que começa a ser cobrado de Bolsonaro, bem como flexibilidade no diálogo com segmentos representativos da sociedade brasileira, sem o incitamento a atitudes de violência e de desunião que pautaram a campanha eleitoral, dividindo famílias e infelicitando a convivência entre opostos. A democracia tem que ser preservada acima de tudo e isto é o que Bolsonaro precisa ter em mente.
Nonato Guedes