Abstraindo outras digressões do filósofo Roberto Romano na entrevista que concedeu ao site UOL fixo-me numa expressão sua que aparentemente resume a ópera: com a rejeição pela Câmara Federal da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB), e mais dois ministros da sua copa e cozinha, o Estado de Direito foi gravemente arranhado no Brasil – entendido como um regime de liberdades políticas e de transparência no serviço público. Brasileiros e brasileiras ficaram impedido(a)s de chegar a uma prova dos noves sobre a extensão das denúncias originárias da Procuradoria-Geral da República envolvendo obstrução da Justiça, corrupção passiva e formação de uma organização criminosa no âmbito do Poder.
Fosse, de fato, o democrata que alardeia ser (e que não é, nunca foi), o presidente Michel Temer teria agido diferente: submeter-se-ia à investigação para poder provar inocência ou incolumidade diante das contundentes acusações assacadas contra ele e asseclas como Moreira Franco e Eliseu Padilha (este declarou, certa feita – quem recorda? – que o governo que sucedeu a Dilma Rousseff constituía-se numa espécie de orgia, ou, de forma mais popular (que foi a que ele usou), uma autêntica suruba. Desde que tão sonoros palavrões foram proferidos, a credibilidade a que aspirava o Sr. Michel Temer foi esmaecendo, já que seu governo foi ombreado a um nível rastaquera, que fere princípios republicanos e reflexos colaterais.
Em vez de passar democraticamente pelo crivo das instituições judiciárias, Michel Temer cometeu outras atitudes indecorosas, lançando mão de instrumentos de coação psicológica do poder para obter adesões ao projeto continuísta, ou seja, de sua manutenção no poder. Incorreu em mais um crime – o de responsabilidade, já que recorreu à liberação de emendas parlamentares, barganhou obras e serviços públicos com deputados e outros políticos, num esforço concentrado para obter o “Arquive-se”. Que, aliás, não está garantido pós-reinado temerista, uma vez que depois de 2018 as denúncias podem ser reabertas, com o Sr. Michel Temer já despojado da sacrossanta imunidade a que tanto se apegou para não prestar contas à Justiça.
Há poucos dias, jornais estrangeiros estamparam a sua estranheza com a situação atípica, excepcional, vivenciada no Brasil – em que um governo impopular como o de Michel Temer consegue se manter com plenos poderes. Os índices de aprovação do governo beiram os 4% ou 5%, os piores dos últimos tempos na história do País – mas Temer, com a maior desfaçatez, faz de conta que esses números são fictícios e que o povo está satisfeito com a sua gestão, onde não há em destaque qualquer obra avançada, somente atos associados ao atraso, ao retrocesso e ao corporativismo. É injustiça atribuir-se a situação atual que o País experimenta apenas a Temer e à sua corja. Deputados e senadores que laboraram no sentido de evitar que as denúncias contra Temer sejam investigadas são cúmplices dessa orquestração antidemocrática, em que simbolicamente se rasga a Constituição porque um valor mais alto se levanta – o da impunidade, para o presidente e para a súcia de apaniguados das regalias oficiais.
O Estado de Direito, que foi reconquistado a duras penas no Brasil, como contraposição ao regime militar-autoritário que vigorou a partir de 1964, foi revogado pela canetada fisiológica do presidente Michel Temer, sancionando o toma lá-dá cá, o dando que se recebe e outras práticas que se queria extirpar mas que estão culturalmente enraizadas no submundo da atividade política. Michel Temer safou-se, escafedeu-se de graves denúncias que seguramente lhe renderiam um processo de impeachment consistente. E devolveu, com seus sócios políticos, o Brasil à condição de republiqueta. Junto com o desmonte da Operação Lava-Jato, temos a volta da corrupção. Até quando a sociedade será paciente com essa orquestração que desmoraliza os valores éticos?
Nonato Guedes