Rebuscando pronunciamentos e outros escritos do senador paraibano Humberto Lucena, que por duas vezes presidiu o Senado Federal, vencendo disputas com Nelson Carneiro e José Fragelli, esbarrei numa defesa que o líder emedebista-peemedebista fizera da imprensa quando o presidente João Figueiredo comportou-se agressivamente com um repórter, em outubro de 1982. No pleno exercício de sua profissão, o repórter Roberto Stafenelli perguntou ao general se Leonel Brizola tomaria posse caso fosse eleito governador do Rio de Janeiro. O presidente respondeu tachando o repórter de imbecil e idiota. Na sequência, Figueiredo, um homem afeito à caserna e aos cavalos gostava mais do cheiro do cavalo do que do cheiro do povo teorizou que perguntas do tipo da que Stafenelli fez eram invariavelmente formuladas por imbecis fantasiados de intelectuais. E alertou que, quando permitiu a liberdade de imprensa, não o fez para que essa prerrogativa resultasse em licenciosidade.
Convém avaliar mais detidamente como eram os fatos naqueles tempos ainda autoritários, não obstante já se ouvissem os primeiros soluços do regime, sinalizando a aproximação dos estertores, desideratum que acabou se concretizando. Figueiredo encarava a restauração da liberdade de imprensa como uma dádiva conferida pelos generais-mandatários e cuidava de pôr limites nessa tal liberdade, deixando claro que ela não poderia descambar para a licenciosidade. Era algo curioso porque, mais grave do que a pergunta do repórter, aliás, de uma pertinência incontestável, era a suruba que desenrolava no poder, às vistas de Figueiredo, materializada no dispêndio de mordomias e nas caixinhas com que empreiteiros retribuíam regiamente os favores e atenções embutidos em contratos para construção de obras gigantescas, nem sempre realizadas, sem que isto prejudicasse o ralo da corrupção que ia cair nos bolsos dos Andreazzas do governo e dos Delfins Neto, com seus delfins-boys, como ficaram conhecidos os jovens economistas, frequentadores de mansões ministeriais nas noites brasilienses.
Humberto endossou o seu pronunciamento contra a atitude de Figueiredo registrando nota da Federação Nacional dos Jornalistas que discordava da atitude do presidente, considerando-a uma intimidação ao livre exercício profissional. Dizia a nota da Fenaj, apensa ao discurso de Lucena: Não cabe aos governantes, por mais altos que sejam os postos que ocupam na hierarquia do Estado, discriminar perguntas feitas por jornalistas. É obrigação nossa fazê-las. Aos homens públicos, cabe respondê-las. No caso específico, a dúvida levantada pela pergunta do repórter reflete os receios de ponderável parcela do eleitorado brasileiro e está solidamente alicerçada em precedentes históricos. Quantas vezes em nossa história as eleições diretas para os governos estaduais foram adiadas ou canceladas? Se em nosso passado ainda recente a vontade popular foi desrespeitada, nada há de imbecil nem de idiota na pergunta.
Figueiredo era um casca grossa cujo temperamento, por muitas vezes, tornava-se hilário, sobretudo no contato com jornalistas. A uma repórter que lhe perguntou o que faria se ganhasse o salário mínimo estipulado pelo seu governo e que era miserável, redarguiu: O que eu faria? Daria um tiro no coco, minha filha. De outra feita, indagado, acicatado sobre que reação teria diante de resistências de setores da linha dura militar à sua política de distensão política, Figueiredo saiu-se com esta: Eu prendo e arrebento quem for contra a democracia. Vai ver, no fundo, Figueiredo não era um mau sujeito. Muitas de suas assertivas tinham a aparência de boutades. Mas isto não o impediu de ser conivente com o que Geisel chamava de bolsões radicais das Forças Armadas. Já no fim da vida, Figueiredo apelou ao povo brasileiro para que o esquecesse. Em certa medida, um apelo inútil ou impossível de ser atendido até mesmo por causa das boutades do general.
Nonato Guedes