O país prepara-se para ser governado novamente pelos militares, desta feita legitimados pelo voto e reféns de uma Constituição-Cidadã proclamada em 1988, vinte e um anos após a ditadura fardada que censurou, torturou, prendeu ilegalmente, cassou mandatos parlamentares, esvaziou universidades, perseguiu religiosos, intimidou jornalistas e intelectuais, instaurou a longa noite das trevas, gerando um trauma com relação à estabilidade democrática numa região como o Cone-Sul, vulnerável a golpes em vários países, nos mesmos moldes ou quase dentro dos mesmos modelos. Insinua-se que o governo do capitão-presidente Jair Bolsonaro e do general-vice-presidente Hamilton Mourão será o que mais comportará militares em postos de comando, nos ministérios ou órgãos que compõem o organograma do poder. No discurso, na diplomação, Bolsonaro jurou obediência à Constituição e às leis, que estão assentadas no pilar democrático. Mas isto ainda não foi suficiente para dissipar temores quanto ao que pode vir por aí. O novo governo, que se segue ao impeachment de Dilma Rousseff e à derrota do PT nas urnas, passando pela prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é uma grande incógnita, para aliados e adversários.
Na Constituinte de 88, partidos como o PMDB ficaram flagrantemente divididos a respeito do papel dos militares na sociedade. Uma parcela expressiva de parlamentares considerava que as Forças Armadas só deveriam se ocupar dos inimigos externos, enquanto outra parcela não menos representativa inclinava-se pela preservação do status quo. Se dependesse da esquerda constituinte, os militares voltariam aos quartéis para dali somente sair em caso de guerra: 93% do PT e a totalidade dos partidos comunistas pensavam assim, conforme resultado de pesquisa encomendada pela revista Veja para sondar tendências. O então senador Jarbas Passarinho, remanescente e estrela do regime militar, opinava que na ordem interna as Forças Armadas seriam de grande utilidade e poderiam ser acionadas em caso de convulsão social. Roberto Cardoso Alves identificava movimentos para restringir o papel das Forças Armadas por ressentimento com a intervenção ocorrida em 64. E advertia: Mas não se pode esquecer que as Forças Armadas dão garantia ao Estado. Elas asseguram a autoridade do Executivo, Legislativo e Judiciário.
O grande problema é que o histórico das intervenções militares no Brasil é complexo. De seis intervenções que não se transformaram em golpes de Estado entre 1930 e 1964, em quatro ocasiões as Forças Armadas se colocaram contra a ordem legal e em apenas duas foram às ruas em defesa da legalidade. Pela Constituição de 1824, com seis artigos dedicados ao tema, a força militar deveria ser obediente e jamais poderia se reunir sem ordem da autoridade legítima, que era o imperador. Isto não impediu que ela o enxotasse em 1831, abrindo um período de anarquia militar que só foi sufocado pela mão de ferro do regente padre Feijó. Já em 1889, por força de um decreto, o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca podia colocar as Forças Armadas nas ruas para tarefas de policiamento. A conjuntura que vai se instalar em 2019 é atípica em relação a outras conjunturas históricas. O que se deve ter, porém, como permanente, é o compromisso com a democracia, que Octávio Mangabeira dizia ser uma plantinha tenra, que precisava ser regada todos os dias, com muito cuidado e carinho.
Nonato Guedes