Em sua última edição, a revista Veja dedica duas páginas da seção cultural ao cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré, informando que, aos poucos, ele está retornando aos palcos, mas deixa claro, de antemão, que não quer saber de política. Ídolo da esquerda nos anos 60, autor de Caminhando, música que virou hino de manifestações de protesto contra a ditadura militar e acabou sendo renegada pelo próprio autor, durante vários anos, Vandré ensaia um inusitado retorno à música pela via erudita, como informa Sérgio Martins, que o entrevistou na praia de Tambaú, em João Pessoa, extraindo respostas curtas e secas de Vandré.
Sérgio Martins relata: Vai se frustrar quem deseja saber se o cantor tão associado aos protestos contra a ditadura militar hoje é da turma que chama impeachment de golpe Vandré, de 82 anos, não quer comentar os eventos políticos do dia. Ele vem de um longo período de silêncio: seu último show ao vivo havia sido a 12 de dezembro de 68, às vésperas da promulgação do Ato Institucional Número Cinco. Chamava-se Das Terras de Benvirá, e foi gravado em 1973 quando ele estava exilado em Paris. Foi seu derradeiro registro em disco até então. Naquele mesmo ano, Vandré retornou ao país, depois de perambular por alguns países da Europa, pela Argélia e pelo Chile. Desde então, abandonou o nome artístico (que vem do nome do pai, Vandregiselo) e voltou a ser o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Neste 2018, porém, ele vem ensaiando um discreto retorno. Em março, foi homenageado em duas noites de show na sua João Pessoa natal. Foram apresentadas as peças para piano que ele compôs com Beatriz Malnic, e a Orquestra Sinfônica da Paraíba tocou versões orquestrais de seus maiores sucessos, entre eles Para Não Dizer Que Não Falei de Flores (Caminhando), música emblemática dos protestos contra a ditadura. Em raro momento no palco, o próprio Vandré cantou Caminhando ao fim do espetáculo, acompanhado pelo violonista AlquimidesDaera e pelo público, que clamou ouvir a composição na voz de seu autor. Na mesma ocasião foi lançado o livro Cantos Intermediários de Benvirá, com poemas do compositor escritos ao longo de 1973. Não cantei no Brasil, canteina Paraíba, dispara Vandré.
O texto de Veja lembra que Vandré, nascido em João Pessoa em 1935, mudou-se para o Rio em 1951 e na então capital federal fez amizades com talentos como o pianista Luís Eça e os violonistas Baden Powell e Carlos Lyra o último foi seu parceiro em Quem Quiser Encontrar o Amor e Aruanda. O disco de estreia, marcado pela bossa nova e pela música nordestina,saiu em 1964. Dois anos depois, Disparada, parceria de Vandré com Théo Barros, dividiu com A Banda, de Chico Buarque, o primeiro lugar do Festival de Música Brasileira. Vandré não participou da passeata contra a guitarra elétrica, de 1967, é fã de jazz mas desprezava o que julgava ser uma influência estrangeira excessiva na música brasileira dos anos 60, daí seu estranhamento com a turma do tropicalismo. Caminhando, conforme a matéria de Veja, foi a bênção e a maldição de Vandré. O autor não gosta que a definam como hino de esquerda. Caminhando é um chamamento, uma crônica da realidade. Canção de protesto é coisa de americano, disse ele. Millôr Fernandes chegou a chamar Caminhando de Marselhesa brasileira, mas Vandré também desdenha o elogio: Eu já acho que a Marselhesa é a Caminhando francesa. A música foi regravada por Simone, interpretada em português por Joan Baez num show que a musa do folk de protesto americano realizou no Brasil em 2014 (Vandré fez uma aparição no palco) e até ganhou versão do furioso grupo de rock Charlie Brown Jr. Em registro mais recente e curioso, a música, que era tida como subversiva, foi abraçada por um policial: Samuel Lago, sargento da PM de São Paulo, vem tentando a sorte como cantor com Caminhando no repertório.
Samuel disse à Veja que adotou o refrão quem sabe, faz a hora, não espera acontecer e que faz músicas sobre a realidade do policial brasileiro. Já a seara popular parece esgotada para Vandré ,que acalenta um projeto ambicioso: compor uma sinfonia. Hoje não existe nada mais subversivo que um subdesenvolvido erudito, diz. A estréia ficaria a cargo da Sinfônica da Paraíba, Estado que tem sido generoso com o filho célebre. Veja informa, a propósito, que Vandré está desde dezembro em João Pessoa a convite da secretaria estadual de Cultura uma iniciativa que custou cerca de 68 000 reais aos cofres públicos. Sou a p*** mais cara do Estado, declarou ele, em entrevista coletiva poucos dias antes do show em sua homenagem. Conclui a reportagem de Veja: – E para não dizer que ele não fala mais de flores, Vandré ainda se permite expressar uma posição política não muito fácil decifrar: Na mão esquerda, trago uma certeza. Na direita, uma garantia. Mas posso trocar de mão, proclama, enquanto a tarde se esvai em Tambaú.
Nonato Guedes