Há 21 anos o universo político brasileiro, em particular a Paraíba, perdeu uma das figuras mais altivas e exemplares do nosso cenário público – o ex-governador, senador, deputado federal e promotor Antônio Mariz. Ele estava no exercício do governo, ao qual chegara na terceira tentativa, mas visivelmente debilitado por problemas de saúde que o levaram a internações em São Paulo e que ocasionaram o desenlace. “Mariz era um político diferente”, ressalta um dos fiéis escudeiros do ideário marizista, o ex-deputado federal Inaldo Leitão. Era diferente porque era paladino da ética. Mais do que isso, aliava teoria à prática. Nunca se registrou uma mácula na sua vida pública.
Em paralelo, Mariz tinha a visão do estadista – e é certo que a Paraíba esperava ardentemente que ele pudesse governar na plenitude, pela convicção de que seria extremamente correto na fixação de metas em favor do bem-estar do povo e indiscutivelmente austero na preservação dos recursos públicos, que, na sua opinião, constituíam patrimônio sacrossanto e, portanto, intocável, longe do alcance dos oportunistas de plantão cevados na locupletação. Fez uma campanha pregando a instauração de um governo de solidariedade porque entendia que a Paraíba já estava devastada demais nas suas reservas, em virtude da incúria de certos governantes sem compromisso com o interesse público.
Como parlamentar, ainda que militando nos quadros da Arena, legenda associada ao regime militar, Mariz não foi subserviente. Pelo contrário, arrostou as arbitrariedades e os arreganhos dos ditadores de plantão. Fez parte de um grupo renovador surgido nas entranhas da própria Arena, defendeu teses caras à oposição como eleições diretas, liberdade de imprensa, anistia, Constituinte. Sua opção pela Arena fora circunstancial e compulsória, derivada de conflitos paroquiais na cidade de Sousa, onde duelava com os Gadelha, tendo, ao final da vida, se reconciliado com Marcondes, a quem chamou para uma secretaria. Eles se respeitavam, ainda que porfiassem em lados distintos. Mais tarde, Mariz pôde, enfim, livrar-se de amarras e tomar o próprio destino nas mãos. Ainda havia tempo para verberar contra idiossincrasias e ele gastou todo esse tempo, com uma coragem invulgar, com denúncias sobre violações de direitos humanos, com propostas que destoavam do discurso coronelístico impregnado até mesmo na verve de quem se dizia oposicionista.
Mariz não cortejava os holofotes, mas era inevitável que estes o procurassem paa focá-lo em toda a sua dimensão. Foi o relator do processo de impeachment de Fernando Collor de Mello como presidente da República em 1992, deixando para os anais da História um dos mais circunstanciados pareceres técnico-jurídicos sobre um fato que era singularíssimo na crônica política brasileira. Disse-me, certa vez, ainda no rescaldo dos comentários sobre o impeachment de Collor, que se tivesse certeza da inocência de Collor não hesitaria em recomendar a absolvição no parecer exarado e aprovado em plenário. Mas faltava-lhe essa convicção (o termo está em moda, por causa de uma entrevista do Dallagnol, ontem, em Curitiba). E, em sendo assim, Mariz preconizou o impeachment de Collor como remédio extremo, mas coerente com o texto constitucional. Ele era assim: legalista ao extremo, rigoroso na aplicação da Lei, desde que houvesse componente de justiça, que, para ele, era o bem maior a ser buscado pelas gerações que se sucedem.
Mariz faz uma falta enorme, sobretudo agora, quando as máscaras de supostos homens públicos impolutos estão caindo diligentemente e expondo à opinião pública as entranhas ou as vísceras de um sistema corrompido, sustentado pela corrupção, pelo usufruto do dinheiro desviado do patrimônio público, numa sarabanda patética de antiética. Uma verdadeira orgia que é ao mesmo tempo uma bofetada na cara do cidadão comum, daquele que gasta o suor para pagar impostos em dia, para estar atualizado com a Lei, enquanto os poderosos se escondem no manto do foro privilegiado, da imunidade odiosa, para darem expansão à impunidade descarada e deslavada. Mariz faz falta em parte, porque os seus ideais continuam vívidos, cultuados não só por discípulos próximos mas por figuras que encaram a vida política como um sacerdócio, não como um negócio. Mariz era um sacerdote da ética.
Por NONATO GUEDES