Ao ensejo do centenário de nascimento do doutor Ulysses Guimarães, evocado hoje, ocorre-me realçar uma figura que me marcou profundamente na cena política nacional. Poucos, como o doutor Ulysses, tinham uma exata compreensão do poder e da sua efemeridade. Agigantou-se especialmente na oposição, como presidente nacional do MDB no regime militar, depois do PMDB na fase de redemocratização. Esteve na linha de frente de campanhas memoráveis que desafiaram as baionetas, como a das diretas-já, da anistia, da Constituinte. Injustiçado na vez em que disputou pelo voto a presidência da República em 89, tendo menos votos que o folclórico Enéas Carneiro, do Prona, doutor Ulysses era um líder emblemático, destemido, altivo e patriota acima de tudo. Promulgou a Constituição-Cidadã e este foi um dos momentos marcantes da sua biografia assinalada por outras batalhas – inclusive as de Itararé, que armaram contra ele. Esteve por várias vezes em listas de cassações da ditadura. Seu nome era poupado à última hora devido à grandeza que encarnava. Cassar Ulysses causaria uma repercussão internacional sem precedentes.
Quando veio à Paraíba na campanha presidencial em que foi injustiçado, tive o privilégio de tomar um “porre cívico” porque era do feitio do doutor Ulysses fazer jorrar sentenças ou axiomas que definiam situações de exceção e projetavam ideais de liberdade, de democracia, de justiça. Fui escalado para entrevistá-lo na TV Cabo Branco, ao vivo, juntamente com o companheiro Chico Maria. Lá mesmo, numa dependência da emissora, entevistei-o com gravador para o jornal Correio da Paraíba, do qual era repórter-colunista. Por último, no restaurante Tia Nila, presentes o governador Ronaldo Cunha Lima e outros líderes políticos do PMDB paraibano e da região, comandei um ping-pong para a revista A CARTA, editada pelo saudoso Josélio Gondim. Ufa? Que nada! Falar era um dos prazeres do doutor Ulysses, certamente pela facilidade com que dominava o idioma. Em retribuição, ele me enviou telegramas que guardo em arquivo, agradecendo a atenção dispensada – como se para mim não fosse uma honra ter estado três vezes num mesmo dia com uma das mais carismáticas lideranças políticas que já conheci.
Quando falo da clareza ou da percepção que doutor Ulysses tinha em relação ao poder, socorro-me de algumas expressões suas, bastante emblemáticas. Por exemplo, esta: “O poder não corrompe o homem, é o homem quem corrompe o poder. Também aqui, o homem é o grande poluidor. O poder não é perigoso. Perigoso é o seu exercício por homens imperfeitos, egoístas, vítimas de apoteose mental ou do culto à personalidade. São os asnos carregados de relíquias, da fábula de La Fontaine. Presumem que as zumbaias são para si, não para as relíquias. Espantam-se e se lamuriam quando, ao acabar o poder, acaba o incenso”. Reproduzi parte dessa epígrafe no meu livro A Fala do Poder, como uma homenagem ao doutor Ulysses e como um convite à reflexão sobre tema tão atual, tão pertinente. Ulysses desafiou os cães e as baionetas caladas do governador Roberto Santos quando foi fazer um comício em Salvador. Tocou de ouvido com Tancredo Neves e Thales Ramalho a engenharia que possibilitou o esgarçamento do regime militar, e, no seu bojo, o aceno da aurora da democracia.
Foi Ulysses quem comparou o presidente Ernesto Geisel a Idi Amim Dada, o folclórico e bufão ditador de Uganda. Por conta da irreverência, quase perdia o mandato. Geisel foi admoestado de que seria desgastante até demais para o regime a hipótese de sancionar Ulysses com a perda de direitos políticos. A quartelada militar já havia produzido centenas de vítimas, de Juscelino Kubitscheck a Carlos Lacerda, passando por Alencar Furtado, Chico Pinto, Lysâneas Maciel. Mas Ulysses não tinha razão para ser grato a eventuais manifestações de generosidade que nem isso eram. Ele tinha consciência do papel histórico que lhe cabia desempenhar. Apesar de politicamente conservador, tornava-se radical quando necessário, dentro da concepção orteguiana de que o homem é a circunstância. Seus discursos entraram para a História como verdadeiros lbelos, de denúncias de injustiças praticadas contra as liberdafdes públicas. Como ele mesmo expressou, Ulysses tinha nojo ao regime de força. Era um apaixonado pelos regimes livres, pela democracia na sua plenitude. Por tudo isso ele foi o grande artífice num período de duas décadas do cenário institucional brasileiro. E esteve à altura dos desafios que lhe competia enfrentar, da mesma forma como sabia ouvir, que é uma arte difícil e, política.
Dizer que Ulysses Guimarães faz falta não é lugar-comum. Mesmo que o seja, pouco importa. Há sempre travessias a serem percorridas no horizonte político nacional. Ainda agora, tivemos o impeachment da presidente Dilma Rousseff e foi necessária muita habilidade para que daí não resultasse um impasse de graves proporções. Se fosse vivo, Ulysses estaria no centro dessas palpitações. Senão como ator principal, como protagonista, seguramente como coadjuvante de peso, como eminência parda, espécie de cardeal Richelieu a ser consultado para delinear marcos que teriam que ser seguidos na trajetória até a terra à vista. Em 89, numa entrevista em Campina Grande, quando abordado sobre o fato de estar nos últimos lugares na pesquisa para eleição presidencial, Ulysses fez um desabafo – contra a imprensa. “Fui um dos que mais lutou pela liberdade de imprensa. Mas os meios de comunicação não me dão espaço, estão encantados com Fernando Collor, que se diz um Indiana Jones’. Estava eu fechando a edição dominical do Correio da Paraíba na avenida Pedro Segundo quando chegou-me o texto enviado pela sucursal de Campina Grande. Fui refletir demoradamente e decretei: “Ulysses será a manchete da primeira página, em duas linhas, com destaque”. E assim foi. Esta se tornou a fórmula que identifiquei para homenagear uma figura a quem o Brasil tanto deve, ainda hoje. Ave, doutor Ulyssses!
Nonato Guedes