No fecho do ensaio intitulado “As várias faces da República”, como parte do seu livro “Memória e História”, o professor Boris Fausto afirmou em dezembro de 1999: “Sem que façamos apostas fechadas para o futuro, hoje, mais do que nunca, abre-se a alternativa de uma República verdadeiramente republicana, cujos traços essenciais se fixem de forma permanente ao longo do tempo”. Cuido que o professor Boris tenha sido profético na observação – e por um simples detalhe: nunca, na história deste País, se falou tanto em “postura republicana” ou “conduta não-republicana”. Um exemplo atualíssimo? Aqui, mesmo, na Paraíba, com a perspectiva da audiência entre o governador Ricardo Coutinho e o presidente Michel Temer, amanhã, em Brasília, a tônica é de que o despacho ocorre em nome das boas tradições republicanas.
Pontuo esse aspecto lembrando a interessante e antológica observação de Aristides Lobo de que “o povo assistiu bestificado à Proclamação da República”. Quis dizer, com isto, que na origem a proclamação por Deodoro da Fonseca, faltou o elemento “povo”, o que conferiria, de certo modo, um caráter de arranjo entre as elites ao gesto que entrou para a história. A ilação que me ocorre é a de que já experimentamos tantas fases no laboratório político-institucional brasileiro que o sentido lato de República foi ficando sem sentido. Claro que em tese, porque, na prática, algumas tendências enraizadas no perfil da Nação brasileira endossam a vigência do princípio republicano. No plebiscito sobre forma de governo que se fez ultimamente no País, o presidencialismo deu de lavada sobre o Parlamentarismo. E, no meu modesto ponto de vista, nada mais republicano do que o presidencialismo. O Parlamentarismo é mais próximo da Monarquia. Aliás, no dito plebiscito, não faltou quem sugerisse uma terceira opção – a Monarquia Parlamentarista. Redundante ou não, prevaleceu o presidencialismo velho de guerra.
Boris Fausto aduz que a República definiu-se como um regime liberal-oligárquico, federativo, na medida do figurino proposto e imposto pelos grandes Estados, com São Paulo à frente. Ao mesmo tempo, rejeitava-se o federalismo extremo dos positivistas gaúchos. A República Federativa permitia uma ampla ação das elites políticas das unidades estaduais mais poderosas e servia aos interesses econômicos de classes regionais, com predominância da chamada burguesia do café, de caráter agrário-mercantil. O federalismo possibilitou também a formação de forças militares estaduais, que garantiam a autonomia dos grandes Estados diante de eventuais ameaças do poder central. Como contrapartida, o Exército ficou em posição secundária e deixou de desempenhar um papel significativo nos dois primeiros decênios do século XX.
Na opinião, ainda, do historiador, em um país de escassa mobilização popular as elites políticas puderam prescindir de uma participação eleitoral significativa. Da proclamação da República para cá, enfrentamos crises, deposições, suicídio, renúncia de presidentes da República e golpes que afastaram governantes com legitimidade popular. Passamos por uma frustração popular com a derrota da campanha das diretas-já, o que não impediu que a democratização seguisse seu caminho e que a eleição de Tancredo Neves despertasse tantas esperanças. O que Boris insinua, ao cabo da análise de outros matizes, é que não obstante as agruras do desemprego, o vírus da corrupção, a vida cotidiana difícil nas grandes cidades, desenha-se nos dias atuais uma possibilidade efetiva de consolidação do regime democrático, ampliado pela participação social e política da sociedade civil. O Brasil converteu-se em uma democracia de nassas, do ponto de vista numérico. Mas muito ainda está por ser feito para que o país venha a caracterizar-se como uma democracia substantiva, na dependência da incorporação dos excluídos e de um grande esforço educacional.
O professor Boris tem razão: hoje, mais do que nunca, abre-se a alternativa de uma República verdadeiramente republicana, cujos traços essenciais se fixem de forma permanente ao longo do tempo.
Por Nonato Guedes