Há certas coisas que, decididamente, só prosperam no Brasil, senão vejamos: há uma expectativa nacional quanto a alguma punição severa a ser aplicada ao ex-presidente Lula diante da profusão de provas e indícios de envolvimento seu em transações irregulares e, em paralelo, em ações destinadas a barrar o andamento da Operação Lava Jato, que ele detesta. O juiz federal Sérgio Moro havia deliberado submeter Lula e sua mulher, dona Marisa Letícia, a interrogatórios para que expliquem o enredo do tríplex no Guarujá, que teria sido doado ao casal por empreiteiras favorecidas pelo governo que Lula empalmou. Uma espécie de ação entre amigos às custas do cansado erário público. No pacote está incluído, igualmente, o sítio de Atibaia, outra prebenda que teria sido ofertada generosamente ao ex-presidente em recompensa pelos benefícios que ele outorgou a empreiteiros.
Lula, até hoje, quando abordado por jornalistas, nunca apresentou defesa convincente da regularidade das transações que o beneficiaram – como, de resto, nunca explicou a história do mensalão. Eis que Moro aceita pedido da defesa de Lula e o dispensa da oitiva, mesmo que o processo continue tramitando, evidente que à sua revelia. E o que se dá, então? O ex-presidente protocola uma representação contra Sérgio Moro, travestida de queixa-crime por “abuso de autoridade”. Moro seria, então, o vilão da tragicomédia que assola o Brasil nos últimos tempos. Lula é o mocinho. Este é o script que o ex-presidente deseja que prevaleça, inclusive, para efeito de registro histórico. Os papéis estão claramente invertidos, com uma diferença: Lula ofende a inteligência dos brasileiros quando age assim.
Não é possível que o ex-presidente da República, mencionado em depoimentos, fotografado nos ambientes que lhe foram dados de presente e com digitais espalhadas em alguns dos episódios recentes e deploráveis da vida pública brasileira esteja flanando livremente e postando mensagens ou declarações em que representa seu papel preferido – o de vítima, ou de mártir, por ter supostamente contrariado interesses quando estava no governo. Lula pratica atos de uma desfaçatez ilimitada, incontrolável, mas assim age porque se considera “o cara”, acima do Bem e do Mal, uma espécie de político “teflon”, em cuja imagem nada gruda, até porque não fez nada de errado. E, o pior, não sabia de nada.
Quando o mensalão petista estourou, a primeira ideia que ocorreu a Lula foi a de dizer que nada sabia. Ensaiou, depois, um pronunciamento público dosado com alto teor de indignação em que se dizia apunhalado pelas costas por ex-companheiros de partido. Políticos como Miro Teixeira e Roberto Jefferson alertaram o então presidente sobre o que ocorria nas suas barbas: a distribuição de uma “mesada” entre congressistas de partidos satélites do PT que votassem a favor de matérias de interesse do Palácio do Planalto. Era um agrado, como retribuição pela lealdade incondicional desses políticos a tudo o que fosse empurrado goela abaixo da sociedade brasileira. Lula só não chorou de indignação porque lhe faltaram lágrimas. Tirante isso, a pantomima foi perfeita, encaixou-se na moldura arquitetada. O país prostrou-se solidário com o “coitadinho” do presidente que não sabia dos malfeitos cometidos nas ante-salas de gabinetes próximos ao poder que ele encarnava. E ficou por isso mesmo. A companheirada foi presa, levada para a Papuda, empreiteiros e marqueteiros entraram de uma hora para outra nas páginas policiais e, quanto a Lula…nada.
Lula é inimputável, como as crianças e os silvícolas, perante a Constituição. Porque é um bom sujeito, o operário-retirante que saiu de Garanhuns, Pernambuco, no Nordeste esturricado pela seca, para sobreviver no Sul Maravilha, onde a concorrência é cruel e desigual – e venceu, contra todas as projeções que sinalizavam que ele não iria ser alguém “importante” na vida. Essa biografia foi construída para Lula e regiamente subvencionada pelo erário – e criou em torno dele uma aura mística. Fez de Lula uma criatura que, tocada, produz milagres, salva vidas, tem poderes excepcionais, situado que está na categoria de um deus político ímpar na história dos mortais políticos brasileiros. Essa pantomima, sinceramente, cansou. Já não comove senão meia dúzia de fanáticos que precisam do mito para sobreviver. Para o restante da população, que dá duro e trabalha cotidianamente, a expectativa era de que Lula não estivesse acima da Lei e que pagasse por pecados cometidos. Mas não se exige isso do “cara”, como a ele teria se referido o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.
Depois, ainda reclamam quando alguém ousa repetir supostamente De Gaulle na constatação de que o Brasil não é um país sério…
Por Nonato Guedes