A morte do líder cubano Fidel Castro, aos 90 anos, encerra um ciclo controverso de trajetória de uma figura que é julgado ao sabor das paixões. Para os inimigos e adversários, era um ditador, um títere. Para os discípulos e admiradores, foi um revolucionário brilhante que instaurou um sistema tornado modelo para gerações de esquerda pelos avanços operados na qualidade de vida da população, principalmente na área da Saúde. Quando fez sua própria defesa perante o tribunal de exceção de Santiago de Cuba, em 16 de outubro de 1953, seis anos antes da Revolução Cubana, Fidel assim intitulou a oração: “A história me absolverá”. Trata-se de um dos mais importantes documentos políticos da história cubana contemporânea.
Na peça, Fidel faz uma análise detalhada da sociedade cubana na época da ditadura de Fulgencio Batista e dos períodos que a precederam. A 26 de março de 1962, com a Revolução vitoriosa, ele disse que não pretendia que o referido discurso fosse uma obra clássica do marxismo. “Ela é expressão de um pensamento avançado, de um pensamento revolucionário ainda em evolução. Não é manifestação de um marxista, mas de um jovem que se encaminha para o marxismo e começa a atuar como marxista. Seu valor permanente reside na denúncia viva de todos os horrores e crimes da tirania, em ter posto a nu o regime de Batista, cruel, covarde, tirânico e assassino. O pouco mérito que possa ter “A História me absolverá” consiste, sobretudo, em que aquela denúncia foi feita num tribunal cercado pelas baionetas de centenas de soldados, cujas mãos estavam manchadas de sangue de oitenta companheiros nossos”, frisou Castro.
Fidel havia sido preso em mais uma tentativa de assalto ao quartel Moncada- na última, a Revolução em Cuba estava a caminho da vitória. Não sendo um texto de literatura revolucionária marxista, a oração de Fidel constitui, entretanto, uma vibrante defesa da democracia, uma denúncia contundente da violência policial, da corrupção governamental, do desprezo à lei e à vida humana. Fidel tornou-se um mito, sobretudo, para as novas gerações de esquerdistas e em parte porque teve ao seu lado, no início da revolução, a figura emblemática de Ernesto Che Guevara. A sublevação ocorrida em Cuba virou modelo a ser exportado para outros países onde grupos de ativistas lutavam contra regimes autoritários, de extrações e origens diversificadas. No Brasil, a partir de 64, foi a inspiração de ativistas clandestinos que protestavam contra a ditadura militar, também considerada a longa noite das trevas, que durou 21 anos a um preço muito caro, com assassinatos, torturas, violações de toda espécie dos direitos humanos, censura à imprensa e cassações de mandatos políticos.
Fidel Castro era um advogado de pessoas oprimidas e tomou-se de indignação com as barbáries praticadas pela ditadura de Fulgencio Batista. Não era, propriamente, um marxista nem se identificava como um comunista. Ele percorreu longo caminho até chegar a esses estágios. De resto, a história de Fidel e de Cuba se confunde, no imaginário intelectual, com atos de censura ao direito de expressão, de um lado, e, de outro, a avanços sociais que foram conquistados, implementados nas primeiras décadas da revolução dos barbudos de Sierra Maestra. A longa permanência de Fidel no poder sempre foi um ponto questionado por intelectuais livres, em paralelo com a não realização de eleições diretas. Mas, paradoxalmente, Fidel impunha-se ao respeito mundial pela sua resistência permanente ao imperialismo norte-americano, o chamado imperialismo yankee. Poucos, como ele, simbolizaram uma resistência tão destemida a uma potência que se julga dona do mundo. Foram inúmeras as tentativas de assassinato de Fidel Castro. Inúmeras e inócuas. Da mesma forma, operações militares articuladas pelos EUA enfrentaram fiascos antológicos em Cuba. Tudo isso emoldurou a figura de um Fidel Castro mártir e herói.
Mas Fidel era, também, um profundo estudioso de religião – de que são exemplos os diálogos mantidos com especialistas do ramo da teologia e por último, já afastado do poder, por problemas de saúde, com o papa Francisco, que atualmente rege o Vaticano. Cuba, de resto, teve que se adequar à mudança na conjuntura internacional. O apoio da União Soviética já não era presente, o bloco oriental se desmoronara, o comunismo ruiu em países que serviram como berço para sua expansão, o imperialismo ampliou tentáculos sob a forma de globalização. Fidel foi um produto da sua época o tempo todo, porque esteve em conflito o tempo todo com as contradições da sociedade. Do enfrentamento delas não fugiu, uma qualidade a mais na sua biografia. Manifestou no seu libelo a convicção de que a História o absolveria. O julgamento começa agora, com a sua morte. Mais desapaixonado, mais concêntrico, capaz de plasmar a verdadeira dimensão de Fidel no curso da História.
Nonato Guedes