Durante muito tempo, no Brasil, prosperou a chamada cultura da impunidade, em que somente preto e pobre iam para a cadeia, por dá cá aquela palha – até mesmo por furtar um pedaço de pão “dormido” para enganar a fome, como se diz lá no meu Sertão. Meu colega de profissão e meu eficaz companheiro de comando jornalístico Sebastião Barbosa escreveu um livro intitulado “Brasil – O país da impunidade” na década de 80, narrando escândalos que pipocavam nas estatais e privadas ou em obras públicas, casos conhecidos como o da Capemi, da Coroa Brastel, da Transamazônica. Em comum entre tais episódios havia a regra de que ninguém era preso.
Essa regra acabou. Inverteu-se, até, um princípio que era disseminado nesses tempos impunes: quando alguma autoridade ou parente de autoridade era pilhada(o) em infração, sacava de imediato a pergunta intimidatória: sabe com quem está falando? Era o passaporte para o infrator não ser molestado – alguns recebiam até pedidos de desculpas. Na sessão para edição do AI-5, que cassava tudo no País, o vice-presidente Pedro Aleixo, um homem digno mas uma figura decorativa no poder dos generais, discordou abertamente da aplicação do Ato Institucional. E deu essa justificativa: “não temo a força desse Ato nas mãos das autoridades; eu tenho medo é do guarda da esquina que vai se dizer “otoridade” e prender quem quiser”. Foi mais ou menos isto o que aconteceu na longa noite das trevas, mas a “parte suja” ficou por conta de oficiais de patente, introjetados de espamos de sadismo que comandavam sessões de tortura nas madrugadas nos porões do regime. Espetáculos tétricos, inumanos.
A Operação Lava Jato, em pleno andamento no Brasil de hoje, é o que há de novidade – e eficácia também. Não se passa uma semana sem que agentes da Polícia Federal, de posse de mandados judiciais expedidos pelo que se convencionou chamar de “República de Curitiba”, formada por jovens procuradores e por promissores integrantes do Ministério Público, cumpram sanções determinadas. Às vezes ocorre de se dar a “condução coercitiva” de alguns suspeitos ilustres para prestarem depoimentos – parte-se da presunção de que alguns réus podem tentar a desobediência e, assim, escaparem dos tentáculos da Lei. Da “vassourada” em curso não escapou nem mesmo “o japonês da Federal”, um agente famoso por ser assíduo nas “campanas” da PF e que acabou sendo enredado dentro de casa, por um desvio cometido, o que lhe valeu pena de afastamento do trabalho por um tempo e o uso de tornozeleira eletrônica, no retorno à lida.
Personagens que foram ministros de Estado, nos governos de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, outros que foram presidentes de partidos como o Partido dos Trabalhadores que Lula fundou no ABC paulista na década de 80, parlamentares no exercício do mandato, ministros de outras Cortes ou tribunais – todos estão sujeitos ao pente fino que se desdobra pelo País com repercussão internacional. Os efeitos? Além do desmonte de organizações criminosas, pela primeira vez consegue-se legalmente a repatriação de ativos financeiros públicos desviados para contas particulares em paraísos fiscais no exterior. Nunca antes na história do Brasil se assistiu a tudo isso. A sociedade, em grande parte, manifesta apoio à Lava Jato. Quer se sentir redimida das ameaças de saque ao erário público – a norma então vigente no Brasil.
É evidente que não há unanimidade em torno da logística operacional da Lava Jato, mas também é verdade que não é uma operação montada às pressas, na base do improviso. Segue modelos eficientes de investigação e rastreamento do dinheiro público que deram certo em alguns países – o mais citado deles a Operação Mãos Limpas, transcorrida numa Itália assustada pelo poder paralelo de gângsters da Máfia. No Brasil, ainda falta muito o que apurar – e há casos pendentes de julgamento ou de punição. Mas muito se fez para desmanter a cultura perniciosa que vigorou até então e que empobreceu a economia brasileira, além de desfigurar a representação política e moral. Quando faz “campana” nas imediações de algum endereço, a PF já sabe com quem vai falar – e o que vai fazer. Simples, em tese. Mas a sociedade brasileira não estava acostumada a isso.
Por Nonato Guedes