A história da transposição de águas do rio São Francisco – que hoje provoca emulações por paternidade entre adeptos do ex-presidente Lula e aliados do atual presidente Michel Temer – demanda uma verdadeira cronologia épica. Em 1870, no período do Império, o debate a respeito foi deflagrado com dom Pedro II, mas não houve avanços concretos. As ideias eram ambiciosas e envolviam a articulação da ferrovia que estava chegando ao País com a transposição das águas do Velho Chico. Por estarem na fase embrionária, os debates não produziram conclusões factíveis. Mas ficou a semente maior – da ideia, que seria perseguida no curso da História até os dias de hoje, alcançando o ex-presidente Lula, que teve a coragem de deflagrar as obras e o presidente Michel Temer, a quem coube entregar o Eixo Leste.
No período de 1919 a 1922, quando se investiu na presidência da República o paraibano Epitácio Pessoa, o debate sobre a transposição tomou vulto por razões óbvias. Mas as ideias continuavam sem um roteiro pré-definido ou conciso. Falava-se em articulação do São Francisco com o Tocantins. Na verdade, havia experimentos, testes de laboratório para se chegar a um consenso que levasse ao ponto de partida. A questão pulsante era como fazer a transposição das águas, coroando-a de forma marcante. Estudos técnicos sucediam-se em bastidores, mas a falta de um modelo externo dificultou a conjuntura. O Brasil surgia como que uma espécie de desbravador, de pioneiro nesse campo. Com o tempo, Israel antecipou-se em tecnologia e forneceu esboços de modelos que foram adaptados à realidade brasileira.
“Sempre que houve seca, abriu-se o debate sobre o combate ao problema”, define o historiador paraibano José Octávio de Arruda Melo. Assim se deu em 1958, quando estava no governo Juscelino Kubitscheck. O Nordeste enfrentou uma das piores secas da sua escalada. A prioridade de Juscelino, mediante compromisso público, entretanto, era com outra obra ciclópica – a construção da Capital do Brasil em pleno Planalto Central. Isto foi o que consumiu páginas inteiras de livros, jornais e revistas, pelos questionamentos acerca dos custos e desvantagens da epopéia. De permeio com o misticismo, refletido na imagem de Dom Bosco, fez-se Brasília, nas cercanias de Goiás, mas no traçado do Planalto Central, como estava mais ou menos escrito. A transposição ficou em segundo plano e a dura seca foi combatida à base de medidas emergenciais e, também, de paliativos, como as frentes de emergência.
Um ponto a ser destacado é de natureza semântica. Por muito tempo, autoridades, políticos e especialistas falavam em “combater os efeitos da seca”. Fizeram, finalmente, uma descoberta acaciana: é impossível combater um fenômeno climático. A semântica foi ajustada, então, para dar lugar à expressão correta: convivência com a seca. Já que ela é inevitável, em fases cíclicas que a meteorologia prevê hoje com uma facilidade estupenda, a solução é coexistir, e, nesse bojo, oferecer alternativas para que a população nordestina não sofresse tanto nessa etapa de calamidade. Creio, pessoalmente, que o consenso semântico tenha sido de fundamental importância para o encontro da luz no fim do túnel. O fato é que de 94 a 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso, as ideias foram postas no papel. Mas o próprio FHC, em seu livro “Diários da Presidência”, assume que apostou muito no barateamento de fórmulas para poupar o Erário. Daí porque não houve avanços. Ele chegou a visitar Monteiro e fez um discurso ambíguo sobre a viabilidade do empreendimento, remetendo-a para os estudos que estariam sendo feitos. Em outras palavras, para as Calendas Gregas. Mas as Calendas Gregas estavam mais próximas do que supunha a vã imaginação dos nordestinos.
Foi, indiscutívelmente, com Luiz Inácio Lula da Silva, nordestino, que a transposição saiu do papel. Não é o caso de dizer que foi um mar de rosas. O processo foi tumultuado, houve embargos e paralisações decretadas pelo próprio Tribunal de Contas da União, suspeitas de superfaturamento na licitação de empresas, o escambau. A transposição parecia ter ido pelo ralo. A obstinação de Lula, entretanto, foi maior. Acossado por escândalos de outra ordem, envolvendo corrupção no governo e no seu partido, o PT, o ex-presidente acelerou o processo de elaboração para que fosse iniciada a execução das obras. E assim foi feito, com continuidade possível, mas nem tanta, no governo de Dilma. Chegando a Temer, com a conclusão do Eixo Leste, que deságua em Monteiro, na Paraíba.
É justo que Lula venha domingo a Monteiro banhar-se nas águas da transposição. Ele realmente lutou para isto – e fez o que muitos antecessores não lograram executar. Lula está liberado para lançar mão do seu bordão preferido: “Nunca antes na história deste País”. Boas-vindas, presidente Lula.
Nonato Guedes