O arcebispo emérito da Paraíba, dom Marcelo Carvalheira, que faleceu no fim de semana, compôs com figuras exponenciais do clero como dom Helder Câmara e dom José Maria Pires, entre outros, a chamada geração pós-Concílio, ou seja, a geração eclesiástica que oxigenou as estruturas da Igreja Católica na esteira do Concílio Vaticano Segundo, uma espécie de divisor de águas, especialmente na América Latina. O Concílio Vaticano prestou-se a uma nova missão da Igreja, de caráter político, com vistas a fazer face a conjunturas que se desenrolavam no Cone Sul em caráter de orquestração.
De um lado, houve a proliferação de ditaduras militares, ditaduras militares e civis, ditaduras populistas, que tinham em comum o abuso da autoridade, a introdução do conceito de segurança nacional como pretexto para embasar ações para-militares, legalizar atos clandestinos, sufocar liberdades individuais, destroçar as sociedades e fazer prevalecer o jugo de minorias subvencionadas pelo poder econômico estatal e privado, estes muitas vezes conjugados, como siameses de uma espécie de mini imperialismo nos países que gravitavam à órbita de potências consolidadas, que com o tempo foram se esvaziando de conteúdo e de força.
Além de sobreviver graças à imposição de medidas de força, esses regimes agitaram o fantasma da “ameaça comunista” como o grande germe destruidor da civilização ocidental e cristã. Foi isto que fez com que mesmo no Brasil religiosos da estatura de um dom Paulo Evaristo Arns e de um dom Helder Câmara fizessem uma leitura enviesada, quiçá totalmente equivocada, das conjunturas concretas que vinham se firmando nos horizontes. Num primeiro momento, por assim dizer, deram um voto de confiança a regimes interpostos dentro do lema do combate ao comunismo, ainda que respaldados por mecanismos autoritários e, portanto, antidemocráticos. Em pouco tempo, houve que uma conversão no clero diante das realidades que foram se materializando. Dom José, em depoimentos antológicos, contou que partiu para uma atuação ofensiva contra o regime militar quando tomou conhecimento das torturas. Em paralelo, acompanhava o empobrecimento do povo, sobretudo em regiões como Nordeste. Tomou partido – pelos fracos e oprimidos, e teve a compreensão de setores da cúpula do Vaticano.
Dessa geração havia remanescentes também torturados fisicamente – tal se deu, por exemplo, com dom Marcelo Carvalheira, que por pouco mais de 50 dias foi preso e perseguido em celas policiais de Porto Alegre, acusado de ser pombo-correio de dom Helder Camara na orquestração de um plano para a “derrubada do regime”. Havia, é claro, movimentos notórios e alguns subterrâneos dentro da Igreja Católica contra a radicalização direitista que havia sido seguida pelo regime militar-civil instaurado em 64. A eclosão, em 68, do golpe dentro do golpe, a prisão de frades dominicanos, o assassinato de um religioso da confiança pessoal de dom Helder Câmara, os bárbaros assassinatos em presídios do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho em São Paulo, onde atuava na Arquidiocese doçm Paulo Evaristo Arns estimularam a corrente de resistência e de denúncia – interna e externa, da ditadura. Foi quando segmentos da Igreja Católica no Brasil assumiram ostensiva posição de confrontação com os gendarmes da ditadura militar encastelados no poder.
O golpe, que se denominou revolução, perdeu o apoio do povo, até mesmo dos políticos que eram chamados de vivandeiras sem quartéis, porque estes também foram alijados da cena política ilnstitucional. Não havia eleição livre, havia imposição arbitrária. A censura campeava solta, os mortos e desaparecidos acumulavam-se nos porões do regime. A ditadura exibiu sua face mais cruel, mais violenta, mais impura, mais desumana. Foi se esgarçando num processo inicialmente a conta-gotas – ao ascender, o fez de forma envergonhada, depois tornou-se escancarada. Os ciclos restantes foram a ditadura encurralada, a ditadura derrotada, a ditadura aabada, na narração fantástica de Elio Gaspari em coletânea obrigatória a qualquer estudioso dos períodos recentes.
Dom Marcelo Carvalheira foi um combatente. Ao lado do povo. Travou o bom combate. Para os paraibanos, era um santo. E tinha mesmo muita coisa de mística na sua personalidade, que somada à de dom José e dom Helder, entre outros, constituíram o núcleo de resistência no clero à longa noite das trevas que se abateu entre nós.
Nonato Guedes