Dá-se hoje o transcurso dos 53 anos do movimento que originalmente foi grifado como “revolução” e que com o tempo passou a ser alcunhado de “golpe” ou “quartelada”. Trata-se da insurreição deflagrada entre a noite de 31 de março e a madrugada de primeiro de abril, a partir de Minas Gerais, por segmentos militares com vistas a depor o então presidente constitucional João Goulart, inquinado por supostas manobras para promover a “comunização” do país. De lá para cá não houve apenas mudança semântica. Houve uma revisitação histórica, confirmando-se a tese de que o tempo é o conselheiro ideal para os julgamentos inexoráveis.
A revisitação possibilitou enxergar o fato de que o golpe não foi apenas militar, foi um golpe civil-militar. Até num primeiro momento lideranças da sociedade civil, de variados segmentos, aderiram à artculação atraídos pelo logro de que era um esforço para salvar a democracia brasileira. Na Igreja, foi explícito e até vibrante o apoio à insurreição armada, como confessou, em autocrítica, o arcebispo emérito da Paraíba, Dom José Maria Pires. Entre os civis, líderes políticos que chegaram a ir ao exterior explicar o “golpe”, como Carlos Lacerda, desiludiram-se quando tiveram seus mandatos igualmente cassados. Ou seja, a “revolução” não poupava ninguém.
Dom José, de sua parte, logo rompeu com o estado de graças a que se atribuíra a partir da eclosão do movimento, ao constatar relatos de prisões, torturas e outras violências, inclusive, contra religiosos e, ao mesmo tempo, pressentir o estágio de empobrecimento das populações em regiões como o Nordeste, onde ele veio pontificar. Fez par com dom Helder Camara, que num primeiro momento, à testa do arcebispado de Olinda e Recife, também foi flexível com a instauração do movimento de 64 e em pouco partiu para o enfrentamento. A Igreja fez, através desses segmentos, uma espécie de conversão. Lacerda, no quadro dos políticos e civis desencantados com o que chamavam de “redentora”, morreu sem conseguir articular uma Frente Ampla com adversários como Jango e Brizola para…derrubar o golpe que derrubou a democracia.
É factível dar crédito ao marechal Castello Branco, que deu declarações prognosticando que a intervenção militar fora concebida para ser breve, devolvendo-se o poder aos civis ou militares eleitos pelo voto. Na prática, tivemos a edição de Atos Institucionais, de medidas atrabiliárias, afetando, inclusive, direitos elementares como o instituto do habeas corpus, a eliminação do direito de defesa e a execução sumária de contestadores ou opositores da nova ordem. Casos dramáticos como a tortura ao líder comunista Gregório Bezerra, no Recife, ou a loucura a que foi levado o Frei Tito bastam para assinalar a face brutal que a “redentora” tomou. Os partidos políticos legítimos foram extintos, sobressaindo, em seu lugar, duas agremiações consentidas. O MDB acabou virando um espectador mal-criado e se voltando contra o Criador, assumindo o papel de estuário da resistência de segmentos que estavam garroteados.
Não é o caso de ignorar que houve avanços na meta do desenvolvimento do Brasil durante o regime militar, especialmente no campo das telecomunicações e da infraestrutura rodoviária. Esse processo se deu muitas vezes em meio a um deslavado estágio de corrupção e improbidade. A “revolução” foi ferida de morte num dos mandamentos que jurara cumprir – o de pôr os corruptos na cadeia. Não pôs – e enquanto isso escalpelava ativistas de esquerda ou até mesmo não vinculados a organizações extremistas mas que discordavam do status quo. As mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho em dependências do DOI-CODI em São Paulo traduzem essa realidade paroxística a que foi conduzido o movimento de 64.
Se é possível ser conciso nas definições, vale dizer que 1964 começou com o ministro Jarbas Passarinho, numa reunião do Conselho de Segurança Nacional, defendendo o recurso ao AI-5, um ato de exceção, com o argumento que entrou para a História: “Às favas todos os escrúpulos”. E acabou com uma frase autêntica do general João Baptista Figueiredo, o último títere do regime: “Por favor, me esqueçam!”. Descobre-se que 64 foi feito para não ser cultuado nem lembrado. Então, só os golpistas ou vivandeiras de quartéis externam saudosismo daquele período e somente os “radicais remanescentes de esquerda” teimam em lembrar o que se passou para prevenir as novas gerações. De concreto, o país perdeu imensamente. Foram duas décadas de terror e corrupção. Esse é o legado da “redentora”.
Nonato Guedes