A morte de dom José Maria Pires abalou profundamente a população paraibana que aprendeu a identificar nele um exemplo de pastor comprometido com as causas sociais, a defesa dos marginalizados e a resistência contra as arbitrariedades. Convivi de perto com o pastor que veio das Minas Gerais, aqui chegando em pleno regime militar, e testemunhei, como repórter, o destemor com que ele enfrentou os arreganhos da linha dura que cedo começava a pôr as unhas de fora, torturando ativistas políticos, promovendo sequestros e “desaparecimentos” de opositores e castrando as liberdades democráticas por meio de éditos institucionais.
Dom José passou a adotar uma linha firme e combativa quando confrontado com duas realidades cruéis: a pobreza reinante no Nordeste brasileiro e, em paralelo, a repressão desencadeada pela ditadura. Num primeiro momento, quando da eclosão do movimento de março de 64, dom José encarou como positivas as promessas de liberalização e bem-estar social. Logo essa impressão se desfez e ele teve a compreensão lúcida, solar, de que não podia se omitir diante das injustiças. Fez-se, então, cavaleiro andante da democracia e da justiça social. Confrontou-se com proprietários de terra da Paraíba que espezinhavam trabalhadores. Denunciou uma versão local do Esquadrão da Morte. Agiu para a soltura de uma freira holandesa detida em momento de tensão nos conflitos pela posse da terra. Enfim, criou o primeiro Centro de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana no Brasil, confiado ao advogado Vanderley Caixe.
Apesar de sofrer na pele, desde criança, as consequências do racismo, dom José mirou-se nessas retaliações como bússola para nortear as ações que empreendeu na defesa dos excluídos. Assumiu a sua negritude na plenitude e passou a ser chamado de Dom Pelé. Depois, tornou-se Dom Zumbi, pela sua identificação com a luta do Quilombo dos Palmares. Atuou no âmbito da Igreja para a convergência ou diversidade religiosa e foi descendente com elementos do sincretismo, sensível ao caldeamento de raças e gêneros existentes no Brasil. A chamada opção preferencial pelos pobres, aclamada no Concílio Vaticano Segundo, teve expoentes de linha de frente no Brasil como Dom José, dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, dom Pedro Casaldáliga, dom Marcelo Pinto Carvalheira, dom Fragoso. Polarizada a Igreja entre progressistas e conservadores, dom José teve habilidade “mineira” para operar no terreno movediço, levando à frente mensagens de conscientização política e de fomento da organização popular para resistir à supremacia do arbítrio.
“Pérola negra” do clero brasileiro, dom José Maria Pires agregou teoria e prática. Ele agiu concretamente na conformidade dos postulados que apregoava e regeu-se por atitudes combativas que o tornaram um dos mais carismáticos líderes religiosos do Brasil, quiçá da América Latina. Foi meu primeiro entrevistado para o jornal “Correio da Paraíba” quando aqui aportei em junho de 1978, vindo de Cajazeiras. Da terra da Cultura, já trazia informações sobre o simbolismo de dom José nas lutas populares, caminhando, sempre, ao lado do povo, aprendendo com o próprio povo, como ele costumava acentuar em suas pregações. Ele foi o mentor de uma nova Igreja na Paraíba e, por extensão, no Nordeste. Na Paraíba foram 30 anos de militância pastoreando o rebanho para o bom caminho. Foi com todo esse cabedal que dom José ganhou corações e mentes. E é por isto que deixa uma lacuna profunda – e um legado de lições que não se apagarão no transcurso da história.
Nonato Guedes