A Justiça brasileira abriga, impunemente, um magistrado que é tido como poderoso, influente, controverso e, naturalmente, impopular. Trata-se do ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que em uma semana soltou nove presos da Operação Lava-Jato, indispôs-se contra a prisão em segunda instância e frustrou uma sociedade que deseja acabar com a tradição de corrupção e de impunidade. Gilmar, naturalmente, está na contramão, mas costuma dizer que não pode estar preocupado com o que falam ou pensam dele antes de tomar uma decisão judicial. Somente assim – acredita – terá condições de agir com independência e julgar de acordo com suas convicções.
Ninguém de bom senso questiona a prerrogativa da independência que magistrados devem ter ao proferir votos ou exarar sentenças. Já vão se distanciando, felizmente, os tempos da longa noite das trevas em que juízes e desembargadores eram postos em disponibilidade ou abruptamente destituídos das prerrogativas inerentes às suas funções. Isto se deu de forma explícita, inclusive na Paraíba, no período de vigência do regime militar, em que os famigerados Atos Institucionais substituíam compulsoriamente os éditos constitucionais e garantias como a do instituto do habeas-corpus. Um tempo em que advogados encarcerados eram aconselhados por algozes a esquecer as regrinhas da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana porque elas seriam inúteis no calor do regime de exceção.
Ocorre-me lembrar que a história do Brasil, felizmente, é povoada no contraponto por figuras notáveis como o advogado Heráclito Sobral Pinto, católico fervoroso que não se negou a defender o comunista Luís Carlos Prestes e invocou em tribunais a Lei de Proteção aos Animais para que fosse aplicada a presos políticos destituídos de qualquer direito de expressão ou de defesa. Eram tratados como bichos porque tiveram a coragem de divergir dos poderosos de plantão e agitar bandeiras como a da democracia, da justiça social e da defesa dos direitos humanos. Já ministros como Gilmar Mendes, nos dias que correm, alimenta-se de convicções nada justas ou sensatas para obstacular as investigações da Operação Lava-Jato, o maior experimento contra a corrupção que já foi colocado em prática no Brasil. É evidente que Gilmar desperta protestos dos segmentos sociais, nas ditas redes em que circula o movimento #ForaGilmar, lançado por artistas. O site Change.org, por sua vez, coletou em pouco tempo mais de 800 mil assinaturas de um total de 1 milhão que se propôs recolher para apresentar um pedido de impeachment do ministro.
Gilmar Mendes declarou-se convencido de que a Lava-Jato tem cometido arbitrariedades e defende abertamente que a Justiça ponha um freio nesse movimento, sob pena de instaurar-se um Estado autoritário no Brasil (palavras dele). É possível que em certas etapas a Operação Lava-Jato tenha cometido excessos ou abusos no afã de não deixar escapar figurões inquinados em acusações de envolvimento com práticas de corrupção ou desvio do dinheiro público. No regime democrático como o que está em vigor, os eventuais abusos ou excessos da Lava-Jato foram coibidos sequencialmente à medida que prosperararam as denúncias e que elas foram comprovadas. Em organizações criminosas com inúmeros tentáculos como as muitas que têm sido investigadas ou devassadas pela Lava-Jato, é possível que uma ou outra medida tenha sido equivocada – mas não tão equivocada a ponto de suprimir liberdades ou direitos individuais. A Lava-Jato foi criando os próprios antídotos aos excessos eventuais, os anticorpos necessários para que a Justiça seja praticada na plenitude. Já quanto ao ministro Gilmar e seus atos, em certos episódios, ele se mantém inimputável, fora do alcance de qualquer punibilidade.
Um dos casos emblemáticos envolvendo a postura questionável do ministro Gilmar Mendes foi a concessão de habeas-corpus ao empresário Jacob Barata Filho, barão do setor de transporte no Rio, acusado de pagar propinas a agentes públicos em troca de vantagens. Gilmar foi padrinho de casamento de uma filha de Barata Filho, que, além disso, é sócio de um cunhado do ministro em uma empresa de ônibus. A mulher do ministro, Guiomar Feitosa, trabalha no escritório de advocacia encarregado de defender Barata Filho. Se tudo isto não configurar uma situação incestuosa, então tudo é permitido no país. A expectativa era a de que Gilmar Mendes se declarasse impedido para julgar o caso. Em vez disso, ele deu o habeas-corpus que o investigado queria. Gilmar subverteu a Lei que ele tem a obrigação de aplicar. Como confiar num magistrado assim?
Além de liberar presos da Lava-Jato, Gilmar Mendes tem se insurgido contra outros pilares da operação. Considera que ela faz uso abusivo das prisões preventivas, que julga alongadas demais. Acha que estas podem estar sendo usadas como instrumentos de tortura para forçar delações. Também não se sente confortável com os termos em que vêm sendo seladas as delações premiadas que, para ele, prometem muito e entregam pouco, além de ferir preceitos legais. Se depender dele, a delação do empresário Joesley Batista, que caiu como uma bomba sobre o governo do presidente Michel Temer, será cancelada.
É esta a Justiça que queremos? Não, não é!
Nem podemos aplaudir posturas de ministros como Gilmar Mendes!
O Brasil acordou para muitas coisas. Mas ainda está fechando os olhos para outros absurdos, esta é que é a verdade.
Nonato Guedes