A escritora paulista Maria Valéria Rezende, radicada em João Pessoa, é a entrevistada da mais recente edição da revista CLAUDIA pela sua iniciativa de reunir entre 12 e 15 de outubro na Capital paraibana cerca de quinhentas escritoras que, entre outras pautas, vão lutar por igualdade na publicação de livros. O evento é denominado de “Mulherio das Letras” e considerado inédito no país. Maria Valéria já pôs no mercado 17 títulos, a maioria infantojuvenis.
Irmã da Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, Maria Valéria Rezende explica que as autoras que participarão do evento são ignoradas pelas editoras literárias. Maria Valéria já dormiu nas ruas de Porto Alegre, em fila de hospitais públicos, na rodoviária e no aeroporto, para ver o que sente uma mulher de sua idade (74 anos) ao se expor à crueza da noite. A experiência tornou real Alice, a personagem que fez o mesmo périplo no romance Quarenta Dias (Alfaguara) e rendeu à escritora natural de Santos (SP) o Prêmio Jabuti de 2015 de melhor livro. Valéria também não vê embaraço algum em aparecer nas fotos fumando seu cigarrão feito James Dean ou topar briga por opiniões políticas, em mesa de bar, como aconteceu com o escritor e cartunista Ziraldo.
O fato de ser freira não a impede de viver nada. Ligada à igreja que fez opção pelos pobres e enfrentou a ditadura militar, Maria Valéria diz: “Eu me recuso a parecer a bobinha que todos imaginam que uma freira seja”. Gosta de mostrar-se carne, osso, suor e sucesso. Em julho, na Festa Literária Internacional de Paraty, fãs paravam a autora de “Outros Cantos”, ganhador do Prêmio Casas de Las Américas neste ano, em busca de selfies. Mas ela já se distanciou do exótico (“uma velhota, desconhecida, que ganhou de Chico Buarque a disputa pelo Jabuti”, lembra) e se consolida como nome forte do romance brasileiro. Na sua autodescrição, é uma anarquista, embora nunca se saiba se está falando sério – ela é bem-humorada e adora uma mentirinha, um exagerozinho, uma tirada hilária para entreter a plateia. Justifica: “Memória e ficção às vezes se misturam”.
Atualmente ela está escrevendo o romance “Carta à Rainha Louca” e contesta a versão de que tenha decidido publicar só aos 59 anos. “Ora, não decidi nada. Nem havia feito o primeiro livro nessa idade. Em missão de educadora na zona rural nordestina, nos anos 1970, depois da missa de domingo, ficava sozinha na minha casinha de taipa, sob o lampião, escrevendo. Era o único jeito de ter algo para ler. Ali não apareciam jornais, revistas, nada. Dava os textos de presente de aniversário aos amigos. Chegava a oferecer a mesma história para mais de um e dizia: “Fiz especialmente para você”. O Frei Betto, frade dominicano escritor, guardou um desses trabalhos e entregou a uma editora que, anos mais tarde, me ligou pedindo todos os originais”, adianta. A Jornada que acontece em outubro em João Pessoa, conforme Maria Valéria, é extremamente importante.
“As mulheres estão sustentando o Brasil, segurando todas as barras e sofrendo demais. Elas precisam de uma dose de coragem e outra de loucura para dar conta de tudo”, explica Maria Valéria. Para ela, as mulheres que participarem do Mulherio sairão com a certeza de que, mais do que um encontro, o evento terá se tornado um movimento em rede e permanente. “Servirá de ponto de partida de uma nova ordem cultural. Será o Mulherio das Palavras e de Todas as Expressões”, enfatiza. Ao comentar a violência doméstica, abuso sexual, gravidez precoce, aborto, Maria Valéria frisa: “As mulheres reformularam sua imagem; os homens, não. Eles necessitam da submissão delas e isso não funciona mais. Em crise, muitos agem com violência. Vivemos num mundo onde tudo se desarrumou, inclusive politicamente. Temos que demolir se quisermos reformar a casa. Ao pôr abaixo as paredes ruins, veremos a liberdade de construir coisas novas”.
Nonato Guedes, com Patricia Zaidan