Nestes tempos obscuros, em que generais acenam com quarteladas, tentando sensibilizar frações importantes da sociedade que estão profundamente desencantadas com “tudo isso que está aí”, veio-me à tona uma série de reflexões do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que é filho de militar. São reflexões breves, compiladas no livro “A soma e o Resto”, um olhar sobre a vida aos 80 anos. À certa altura, FHC é indagado sobre como gostaria de ser lembrado. E ele: “Não prendi ninguém, não fui violento, exerci o poder democraticamente, ajudei a criar as condições de um futuro melhor para o Brasil”.
O respeito à democracia e outros gestos elevados, que são comuns em estadistas, precisam estar sendo sempre mencionados pelas lições que encerram em momentos históricos de um País que não está livre de sobressaltos e retrocessos, a despeito de avanços experimentados ao longo do tempo. Tanto mais quando um general, Hamilton Mourão, tenta encarnar a versão golpista dessas tristes etapas e nada sofre porque o governo que temos, o do presidente Michel Temer, padece de firmeza, seriedade e compromissos éticos. Por não querer derramamento de sangue entre irmãos brasileiros foi que João Goulart brecou ensaios de reação – espasmódicos, diga-se a verdade – à longa noite das trevas instaurada em 1964.
Juscelino Kubitscheck, um dos mais carismáticos líderes políticos que o Brasil já teve, anistiou rebelados de Jacareacanga e Aragarças que pegaram em armas para derrubar o seu governo democrático. Costumava dizer que não tinha compromisso com o erro: em cometendo-o, procuraria corrigi-lo, para reposição da justiça e da verdade. Quantos governantes seriam capazes de atitudes assim? O general João Baptista Figueiredo fechou o ciclo dos generais pedindo ao povo que o esquecesse. O primeiro presidente do ciclo golpista – que os militares chamam de revolucionário – Castello Branco abriu a porteira para a prorrogação do próprio mandato. Docemente constrangido? Não há indícios históricos desse tipo de manifestação.
É de ruborizar a cantilena que militares voltam a proclamar, como se estivessem cortando um dobrado, de que eles só chegam ao poder por exortação do povo. São os predestinados, os ungidos como salvadores da Pátria, prontos a livrar o País dos riscos que aparecem no horizonte. Aos desmemoriados cumpre lembrar que em 64 os militares propunham-se a acabar com o comunismo e a roubalheira. De concreto, a roubalheira sofisticou-se no âmbito do próprio poder, de que são exemplos os mensalões, petrolões e outros escândalos que pipocam. Quanto a acabar o comunismo, pura falácia. Ninguém extingue a ideia ou o projeto comunista, que perpassou ciclos históricos grandiosos. O que pode haver é repressão ao ativismo político de esquerda. Já na ditadura de Getúlio Vargas, que operou o Estado Novo de Felinto Muller e Lourival Fontes, deu-se a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro e líderes como o comandante Luís Carlos Prestes foram perseguidos de forma tenaz. Na retomada da ditadura, agora nos moldes militares, a partir de 1964, a repressão começou mirando os de sempre: os comunistas. Mas dessa vez o expurgo amplo demais, provocando um deserto de cérebros no País. Sobreviveram apenas as vacas fardadas, título que o general Olympio Mourão Filho se atribuiu, desiludido com os rumos da “redentora” que lhe coube empalmar saído de Juiz de Fora, nas Minas Gerais.
Um dos Mangabeira da política – creio que o Octávio – qualificava a democracia como uma planta tenra que precisava ser constantemente adubada para florescer. A conjuntura a que o Brasil tem sido arrastado ultimamente favorece elucubrações fascistas – e o descrédito das instituições políticas ajuda a formar cenários lamentavelmente propícios a situações de força, a rupturas da ordem constitucional vigente. Até porque Poderes constituídos, como o Judiciário, estão na berlinda, em que pese o esforço de alguns magistrados em passar a limpo de verdade as corporações nacionais, batendo-se contra os arreganhos de populistas como o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva. Quer queiram ou não os demagogos, populistas, golpistas e vivandeiras de quartéis, a democracia é regime a ser preservado – e o será, contra todas as tentativas que forem articuladas para matá-la.
Nonato Guedes