Há muito o que falar nestes 25 anos do desaparecimento do doutor Ulysses Guimarães, um dos ícones da luta pela democracia no Brasil. Suas contribuições ao processo histórico foram inúmeras e assinaladas em pleno período de resistência ao regime militar. Pilotando um partido dito consentido, o MDB, Ulysses arrasttou a agremiação, como seu presidente, para a radicalização contra a ditadura. Era uma forma, também, de infundir ânimo numa sociedade alquebrada com os sucessivos golpes impostos pelas baionetas da longa noite das trevas.
Em sua homenagem, transcrevo o prefácio do jornalista Sebastião Nery ao livro “Rompendo o Cerco”, que o doutor Ulysses me deu, com dedicatória, numa das suas passagens pela Paraíba:
Itararé na Bahia
Sebastião Nery
Ninguém me contou. Eu vi. Estava lá. Às 19 horas da tarde de sábado, no “hall” do hotel Praia-Mar, em Salvador, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Roberto Saturnino e Freitas Nobre receberam a visita de toda a direção do MDB da Bahia com a notícia nervosa:
– A polícia militar cercou toda a praça do Campo Grande e comunicou oficialmente ao partido que não vai permitir a reunião para lançamento das candidaturas da Oposição ao Senado.
– Mas isto é ilegal. A portaria do Ministério da Justiça proíbe concentrações em praça pública, não em recinto fechado. A sede do partido é inviolável.
Ulysses esfregou as mãos na testa larga, desceu pelos olhos fechados, levantou-se:
– Vou entrar de qualquer jeito. Vamos entrar. É uma arbitrariedade sem limites.
Em vários automóveis, saímos todos, políticos e jornalistas. Foi marcado encontro em frente ao teatro Castro Alves, do outro lado da sede do PMDB. A praça era um campo de batalha: 500 homens de fuzil com baioneta calada, 28 caminhões-transportes, dezenas de patrulhas, lança-chamas e grossas cordas amarradas nos coqueiros em torno de toda a praça. Ulysses olhou, meditou, comandou:
– Vamos rápido, sem conversar.
Avançou. Atrás dele, Tancredo, Saturnino e a mulher. Freitas Nobre, Rômulo Almeida, Newton Macedo Campos e Hermógenes Príncipe, candidato do MDB ao Senado, deputados Nei Ferreira, Henrique Cardoso, Roque Aras, Clodoaldo Campos, Aristeu Nogueira, Tarcilo Vieira de Melo, Domingos Leonelli, vereador Marcelo Cordeiro, Nestor Duarte Neto, jornalistas. Uma cerca de fuzis e os soldados impávidos. Quando o grupo se aproximou, um oficial gritou:
– Parem, parem.
Ulysses levantou o braço e gritou mais alto:
– Respeitem o presidente da Oposição.
Meteu a mão no cano de um fuzil, jogou para o lado, atravessou. Tancredo meteu o braço em outro, passou. O grupo foi em frente. Três imensos cães negros saltaram sobre Ulysses. Freitas Nobre dá um pontapé na boca de um, Rômulo Almeida defende-se de outro. Estamos todos na porta, entramos aos tombos. Ulysses sobe à janela, liga os alto-falantes para a praça:
– Soldados da minha pátria! Baioneta não é voto, cachorro não é urna.
Era o comício que não tinha sido planejado: 14 discursos e uma passeata. Graças à batalha de Itararé da Bahia. No dia 15 de maio de 1978.
Encerro essas anotações com uma das frases constantes do Decálogo do Estadista de doutor Ulysses Guimarães:
“A pior das crises é a crise do dicionário, disse Ortega & Gassett. É a que infelicita o Brasil. Falam em Constituição com AI-5, em liberdade com cavalos e cachorros, dissolvendo-se manifestações ordeiras de trabalhadores, estudantes, donas-de-casa, do MDB, em democracia, com governadores de proveta e senadores biônicos, em direitos operários com o confisco de seus salários, em liberdade de comunicação com a censura ao rádio, à televisão e a Lei Falcão; que a Arena é o maior partido do Ocidente, embora quem ganhe as eleições no Brasil seja o MDB: em independência externa, com 40 bilhões de dívidas, em governo de estadistas, com inflação crônica de 50%, em milagre brasileiro, com o flagelo da fome, da falta de teto, da carência do INPS, da taxa crescente de analfabetismo”.
Grande doutor Ulysses Guimarães!
Nonato Guedes