Há uma ponta de mau-caratismo nas declarações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jornal espanhol “El Mundo” em que desanca sua “invenção política” Dilma Rousseff, acusando-a de ter traído eleitores na campanha de 2014 para a reeleição, com posições descumpridas em relação a medidas de ajuste fiscal para o controle da estabilidade econômica. A intenção de Lula é clara: com a proximidade das eleições presidenciais de 2018, ele quer demarcar limites antecipadamente dentro do PT e num suposto cenário político de esquerda, apresentando-se como um “deus”, que cometeu acertos e trabalhou pelo povo, enquanto a sucessora que ele idealizou não teve energia para levar adiante as reformas anunciadas.
No processo político que se desenrola no Brasil no pós-impeachment de Dilma Rousseff, há situações surrealistas que só acontecem nesta terra, como gostam de fazer crer os analistas internacionais de outros países, que de forma contumaz mostram-se intrigados com as coisas que prosperam nestes trópicos. Um dos exemplos desse surrealismo é o fato de que Dilma, que não concluiu o segundo governo e teria sido destituída por um golpe midiático e parlamentar, conforme sustentou o petismo durante algum tempo, não capitaliza a condição de vítima do que teria ocorrido no país. Pelo contrário, Lula dá a entender, com estas recentíssimas declarações, que Dilma, o “poste” por ele idealizado, falhou no resgate de compromissos com as camadas populares. Logo, é uma traidora do povo. Note-se que Dilma, embora tenha sofrido o impeachment que a impediu de executar o segundo governo, está teoricamente liberada, nos termos da Lei, para concorrer a qualquer mandato eletivo, inclusive, novamente, a presidente da República. Não é o caso, é claro – ela deverá tentar disputas regionais em algum Estado influente, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul ou Minas Gerais.
Enquanto isso, Lula, que não abre mão de ser o candidato de honra do Partido dos Trabalhadores a presidente da República, rejeitando disputar qualquer outro mandato, enfrenta ameaças de instabilidade legal para concorrer a cargos eletivos no próximo ano. A sentença emitida pelo juiz Sérgio Moro, um dos comandantes da Operação Lava-Jato, estipulou condenação do ex-presidente da República por quase uma década, mas cabe recurso da medida em outras instâncias do Judiciário – e é para elas que o ex-presidente Lula tende a apelar a fim de ser mantido incólume de sanções por atos que teria praticado e que teriam sido lesivos ao interesse público. Na verdade, mesmo, Lula apela mais para a pressão popular do que para a cabeça de juízes, já que a pressão popular é emocional e como tal está cristalizada de certa forma.
Tanto é correta a análise sobre a estratégia política-eleitoral que o ex-presidente Lula põe em prática que foi deflagrada, sem cobertura da grande mídia nacional, a segunda etapa das denominadas “Caravanas de Lula”, expedições a Estados a pretexto de discutir problemas e denunciar o impeachment de Dilma, mas na verdade ofensivas eleitoreiras com vistas a capitalizar sentimentos emotivos de parcelas do eleitorado brasileiro. Na primeira fase, a tal Caravana se desenrolou por Estados do Nordeste, de onde Lula é originário e onde politicamente o PT logrou abrir espaços vitais, quase fechando porteiras para outros partidos e candidatos que porventura ousassem aparecer como alternativas. Nesta etapa, agora, a Caravana se desenrola pelo Estado de Minas Gerais, que tem importância política, inclusive, simbólica, devido ao desgaste do ex-candidato do PSDB a Presidente da República em 2014, Aécio Neves da Cunha, pilhado em denúncias flagrantes de irregularidades. Os petistas querem insistir na polarização com os tucanos – porque conhecem esse terreno de perto e adoram trabalhar com o menor esforço, sobretudo agora que os quadros estão desfalcados devido a prisões de antigos líderes ou companheiros de jornadas, incriminados em atos de corrupção.
Lula, naturalmente, é “o cara” – sempre foi, pela sua trajetória como líder popular construída a partir da militância nos sindicatos de trabalhadores do ABC paulista e, posteriormente, pelo seu empenho na tarefa de dotar o Brasil de um Partido dos Trabalhadores – ainda que ao chegar ao poder a agremiação tenha espatifado compromissos de mudanças que alardeou como engodo para alcançar o poder. Tanto Lula continua sendo incensado que já se prepara uma outra estratégia: em caso de impedimento de uma virtual candidatura dele a presidente, o partido se absteria de participar das eleições em todos os níveis em 2018, fazendo uma denúncia internacional de suposta falta de liberdade política no Brasil. É uma pantomima muito perigosa a que os petistas tentam armar, mas para quem perdeu o poder e a credibilidade isto é o mínimo de barulho que eles são capazes de provocar. Quanto a Dilma, é como se ela não tivesse sido a principal vítima do golpe, já que o próprio Lula a acusa hoje de ter traído fatias do eleitorado. Supõe-se que a esta altura também estejam sepultadas as denúncias sobre misoginia praticada contra Dilma – sobre isto, ninguém mais fala. Nem mesmo as feministas assumidas que têm simpatia pelo Partido dos Trabalhadores e pela história de Dilma.
Os decaídos e as decaídas do poder praticam a mais deslavada misoginia, sob complacência absoluta da mídia de esquerda. Tudo, de forma calculada, para ofuscar a passagem da primeira mulher presidente na história do Brasil e preservar-se, por machismo consentido e tolerado, a suposta odisseia redentora simbolizada pela ascensão de um ex-líder metalúrgico à presidência da República. O PT destrói seus símbolos sem o menor remorso. Porque nunca teve compromisso com a História. Nem abriu espaço para outras lideranças. Porque apenas Lula foi talhado para isto. É um ungido dos deuses que inspiram a ventania petista. Não ´preciso gastar muito fosfato para traduzir essa pantomima.
Nonato Guedes