A amiga Patrícia Mariz estranha, com razão, em rede social, o excesso de polêmicas vigentes no Brasil destes tristes tempos. “Quanta polêmica!”, expressa Patrícia, ao tecer comentários sobre um episódio envolvendo o deputado federal de sobrenome Marun, de São Paulo, aliado do presidente Michel Temer, que cantarolou trecho de uma música do cantor Benito de Paula para ilustrar sua sensação de alívio com a rejeição pelo plenário da Câmara da segunda denúncia contra o presidente da República. “Tudo está no seu lugar, graças a Deus”, entoou o animado Marun, aparentemente refeito da carga de tensão provocada pelo impasse que colocou em cena o ex-vice de Dilma Rousseff.
A atitude do deputado foi considerada absurda pelo próprio Benito de Paula, que se achou na obrigação de vir a público afirmar que não tem nada a ver com a “bandalheira” que está aí e que, portanto, qualquer alusão política a seu respeito é inadequada, inapropriada e indevida. Quanta bobagem, meu Deus, da parte de Benito de Paula. A música, desde que ganhou as paradas, não lhe pertence, como livros tornam-se de domínio público, geral, depois de impressos, lançados ou distribuídos. Ocorre, também, que em relação a músicas, sempre foi tolerável a liberalidade com que fãs se manifestam, adaptando-as a seus momentos e às suas circunstâncias. O deputado Marun estava feliz. É quase compadre do Temer, tem lá suas brigas com os inimigos de Temer, mas os versos de Benito entraram na história apenas como alegoria inofensiva.
O paraibano Geraldo Vandré assustou-se quando uma música sua, “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” ou “Caminhando” virou uma espécie de hino popular contra a ditadura militar, nos tempos mais sombrios que esta experimentou em nosso território, com prisões ilegais, torturas e toda sorte de arbitrariedades conferidas por atos de exceção empurrados à consciência cívica da Nação. Vandré entrou em pânico ao avistar multidões desfraldando o refrão nas ruas num período em que era proibido protestar, ser contra o regime. O artista paraibano imaginou que as consequências viriam para cima dele, e, de fato, elas vieram de forma cruel, cortando a própria carreira de Geraldo Pedrosa de Araújo, como ele preferia ser chamado na longa noite das trevas. Vandré ficou marcado – e consta que as torturas psicológicas levaram-no a se sentir quase prisioneiro, embora pudesse circular livremente, em tese. Desde então, jamais pôde levar adiante uma carreira que parecia promissora. Havia pedra no meio do seu caminho.
Ainda para nos atermos à ditadura, outros sucessos musicais caíram na boca do povo e foram utilizados para incomodar o regime. Chico Buarque de Holanda, que se viu forçado a usar um pseudônimo – Julinho da Adelaide – em uma das suas composições, foi tomado de empréstimo com seu refrão “Você não gosta de mim/mas sua filha gosta”. As versões dão conta de que era uma alusão subliminar à filha única do presidente Ernesto Geisel, que deixara escapar ser fã de Chico. Censurado e perseguido internamente, Chico Buarque deu o troco com a analogia anti-ditadura. Mais ostensivo, Caetano Veloso compôs letra em que sugeria: “É proibido proibir”. Virou hino nacional – mas Caetano foi punido com o exílio em Londres, junto com Gilberto Gil e uma leva de intelectuais brasileiros. Isto se deu num tempo em que o ato de pensar era proibido e o de expressar era mais ainda. Quem ousasse contrariar o figurino pagaria algum preço, fosse qual fosse.
Bem ou mal, o Brasil reconquistou a democracia e vem procurando consolidá-la a duras penas, aqui e acolá deparando-se com obstáculos derivados de recaídas da tentação autoritária, presentes nos corações e mentes de pessoas que vivenciaram a noite das trevas. Em paralelo, instaurou-se no país uma espécie de Fla X Flu político-eleitoral, opondo petistas ao resto formado pelos não-petistas ou, como queiram, opondo anti-petistas a petistas ou lulopetistas. Nesse caleidoscópio, em que se misturam denúncias de corrupção e de saque ao erário, a ética já foi para as cucuias há muito tempo. O povo está pobre e sem perspectivas, o governo de Temer é o mais rejeitado da história do Brasil mas não há um clamor unânime pela volta de petistas, alguns dos quais estão atrás das grades porque foram pegos com as mãos na massa. O que ocorre, então? Ocorre a intolerância, filha bastarda da cegueira ou do radicalismo político, do sectarismo que permeou organizações partidárias no passado e que teve que ser retirado da ordem do dia por não ser o caminho mais indicado.
O ambiente de intolerância é que está tornando o Brasil dividido, o povo separado, as relações interpessoais abaladas – e, como corolário, a proliferação de baboseiras como a de Benito de Paula, vindo a público desautorizar um deputado a cantarolar versos que ele transformou em música, quando se sabe que esses veersos são de domínio público, sempre estiveram na boca de bêbados e inocentes e nem por isso eles foram molestados, inclusive porque, rigorosamente, não fizeram nada de errado. Gente, o Brasil está uma droga por causa das empulhações políticas. Precisamos mudar esse enredo e investir na tolerância, no pluralismo, no respeito verdadeiro ao contraditório. Façamos como sugeriu Fraanz Kafka, um autor atormentado mas que nos legou grandes lições. Uma delas: “Comece pelo que é correto, não pelo que é aceitável”. Sigamos Kafka. Marun vai passar daqui a pouco, como Benito de Paula parecia ter passado e, no entanto, foi ressuscitado, pelo menos para render uma polêmica num país que não prima pelos consensos democráticos.
Nonato Guedes