Volta e meia me pedem para falar sobre a campanha de 1986, aquela em que Burity deu um banho de votos em Marcondes Gadelha na disputa pelo governo do Estado. Na época, aqui na Capital, só existiam três emissoras de ondas médias (as rádios Tabajara, Arapuan e Correio) e duas de freqüência modulada (Arapuan e Correio). As FMs adotavam a linha “vitrolão”: somente música e notícias curtas, quase telegráficas. O quente ainda eram as AMs. Segundo avaliações trimestrais do Ibope, a Arapuan AM e a Correio AM disputavam palmo a palmo a liderança da audiência. E talvez por isso acabaram protagonizando a guerra de propaganda na campanha.
Dirigida pelo jornalista Aluísio Moura, que anos antes rompera com Marcone Góes e se afastara dos Diários Associados, a Arapuan pertencia aos irmãos Antônio e Milton Cabral. Milton viria a cumprir mandato-tampão de governador, completando o tempo de Wilson Braga, que deixara o cargo para se candidatar ao Senado na chapa de Marcondes Gadelha. Quem conhece a Paraíba sabe muito bem que seria inevitável o envolvimento dos dois grupos de comunicação na disputa política.
Eu apresentava dois programas diários na rádio Arapuan AM; na realidade, duas vitrines da emissora: o João Pessoa, Bom Dia (segunda-sábado, das 5 às 8 h da manhã), e o Jogo Aberto (segunda-sexta, do meio-dia às 2 h da tarde), este batendo de frente com o programa de Luís Otávio, carro-chefe da programação do Sistema Correio. Foi assim que, como o “Repórter Esso”, acabei sendo testemunha ocular da História.
Para começo de conversa, não se pode negar que o ex-governador Tarcísio Burity teve boa atuação no primeiro mandato e já era um candidato forte em todas as regiões do Estado, o que ficou comprovado na disputa interna com o senador Humberto Lucena para definição do nome do PMDB ao governo. O próprio Humberto Lucena, político experiente, caindo na real, desistiu da postulação, mesmo não escondendo de ninguém que seu grande sonho era governar a Paraíba.
Não seria exagero dizer que Burity, naquele momento, era a personificação da vontade popular. Outro ponto importante: O PMDB era Oposição na Paraíba, mas, com a instalação da malfadada Nova República, deitava e rolava no plano federal. Seus seguidores, em nosso Estado, diferentemente dos militantes do velho MDB, que eram tratados a pão e água pelo regime militar, recebiam todas as benesses do governo Sarney, controlavam os órgãos federais, demitiam e nomeavam, direcionavam verbas orçamentárias, enfim, tinham todo o apoio logístico de Brasília para encarar o enfraquecido poder local. O PMDB de 1986 não era uma Oposição de mãos vazias. Muito pelo contrário.
Não se pode falar da campanha de 1986 sem fazer referência ao Plano Cruzado. O Plano Cruzado, o da inflação zero por decreto, lançado bombasticamente em 1986 pelo presidente José Sarney, por sugestão do seu genro Jorge Murad, funcionou em todos os Estados como uma espécie de anabolizante em favor dos candidatos do PMDB. Naquele ano, o PMDB elegeu folgadamente a quase totalidade dos governadores, inclusive o governador Tarcísio Burity, aqui na Paraíba. A única exceção foi Sergipe, onde foi eleito Antônio Carlos Valadares, do PFL.
De quebra, naquela eleição, o PMDB elegeu uma enorme bancada, tanto na Câmara como no Senado, numa legislatura posteriormente transformada, pelos próprios parlamentares, em Assembleia Nacional Constituinte.
O Plano Cruzado foi (e dia-a-dia se encarregou de o demonstrar) um dos maiores estelionatos eleitorais da História recente do Brasil. Transformou-se no esquema perfeito para garantir o controle do PMDB sobre a vida pública brasileira, fazendo com que o Partido monopolizasse a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela elaboração da Constituição de 1988.
Portanto, não é exagero dizer-se que a tal Constituição Cidadã é filha de um golpe publicitário chamado Plano Cruzado.
Marcondes Gadelha não era um qualquer. Político com verniz intelectual, viajado, ainda jovem, bom orador, figura de projeção nacional por ter sido do grupo autêntico do MDB, surgia levantando a bandeira de modernização do Estado (adotou o slogan Juventude e Modernização), aumento dos controles sociais sobre a máquina pública – e até ousava dar os primeiros toques num tema que ainda era um verdadeiro tabu: a privatização.
Em matéria de discurso, Marcondes era realmente a novidade. Até o jingle de campanha, Vamos que vamos, letra e música de Carlos Aranha, videoclipe que se tornou muito popular, era um rock do grupo Absyntho, banda liderada pelo vocalista Sylvinho Blau Blau, que estava na crista da onda.
Isso num tempo em que os políticos usavam marchinhas de carnaval, sambinhas e dobrados militares nas campanhas. A de Burity mesmo era uma marchinha feijão-com-arroz. Forte era o slogan do candidato, sugestão do jornalista Marcone Formiga: Porque o povo quer.
Acontece que Marcondes estava atrelado ao que havia de mais ultrapassado na política paraibana: o braguismo. Mesmo com o sucesso do Projeto Canaã e o assistencialismo da Funsat, era visível o desgaste do braguismo. Os escândalos, sempre vistos com lentes de aumento pela Oposição, ganhavam facilmente as manchetes, e muitas vezes não tinham sequer resposta do governo. Essa situação fez de Marcondes um pássaro sem asas. Ele não conseguia decolar.
Por mais que Gadelha procurasse fazer uma campanha descolada do braguismo, buscando minimizar suas contradições, o fato de receber apoio aberto e decidido do grupo, inclusive com a máquina do Estado trabalhando a todo vapor, colocava Marcondes na alça de mira do Sistema Correio, arquiinimigo do ex-governador Wilson Braga, por razões que toda a Paraíba conhece.
Para não ir muito longe, tínhamos, em 1986, Tarcísio Burity, administrador testado e aprovado no primeiro mandato, líder absoluto na preferência popular, turbinado pela onda avassaladora do Plano Cruzado, ou seja, produto perfeito e acabado, contra um Marcondes Gadelha que, em decorrência das forças que o apoiavam, era a contradição em pessoa, no mínimo, uma formidável interrogação.
Nenhuma máquina administrativa, por mais azeitada que seja, pode obrar milagre numa campanha já definida. Nem a Casa da Moeda, bancando tudo do outro lado, tiraria a vitória de Burity. O eleitor já havia feito a sua escolha e estava diante de uma questão simples: trocar o certo pelo duvidoso. Ficou com o que naquele instante achava que era o certo.
A grande verdade é que já se passaram 28 anos. Os tempos são outros. A Paraíba é outra. O eleitorado é outro. As mulheres e os jovens, por exemplo, estiveram praticamente ausentes das eleições daquele ano. Hoje, ao contrário, são forças decisivas para a vitória de qualquer candidato. Outra coisa: em 1986 não havia os recursos da tecnologia da informação que se tem hoje.
Naquele tempo, essas ferramentas que possibilitam a comunicação instantânea de um único indivíduo com toda a sociedade, só eram vistas nos livros de ficção científica, quase todos em língua inglesa.
João Pessoa não tinha sequer uma emissora de televisão. A TV Cabo Branco estava em fase de instalação, iniciando suas transmissões já bem pertinho do pleito como afiliada da TV Bandeirantes, só mudando para a Rede Globo em 1º de janeiro de 1987.
O guia eleitoral era gerado em canais de TV da cidade do Recife, sintonizados precariamente em João Pessoa. A Lei Eleitoral era uma figura geométrica e a própria Justiça Eleitoral, apesar da vigilância dos seus antigos membros, não possuía as ferramentas de hoje para fazer valer a legislação. Enfim, 1986 era outra realidade, outra história. Não se pode comparar com 2014.
Por Petronio Souto – (texto de setembro de 2014)