Atos públicos em todo o país assinalam hoje o Dia da Consciência Negra, instituído em 2003 com o propósito de reverenciar Zumbi dos Palmares, figura mitológica que entrou para a História ao sustentar uma resistência no quilombo em que seus companheiros de pele eram subjugados pelo opressor. Ocorre-me homenagear a figura de dom José Maria Pires, falecido recentemente, que foi arcebispo da Paraíba durante três décadas e que assumiu a negritude como poucos, demonstrando orgulho da sua raça e das lutas empreendidas contra a segregação ou o “apartheid”.
Não estou exagerando ao comparar dom José, no panteão de expoentes da luta pela liberdade, à figura de Nelson Mandela, que foi preso, humilhado e nem por isso arrefeceu a luta contra o apartheid na África do Sul, chegando, finalmente, à presidência da República. Dom José, inclusive, numa entrevista ao jornalista Severino Ramos,revelou que preferia ser chamado de “Dom Zumbi” a ser chamado de “Dom Pelé” por se identificar mais com as lutas que aureolaram o líder de Palmares. A celebração da data pede mais que reflexão – pede iniciativas concretas para que a discriminação contra os negros seja banida definitivamente do território brasileiro.
Claro que não é o caso de olvidar avanços ou conquistas que têm sido incorporados ao dia a dia da sociedade – insuficientes ainda, porém, para conferir ao negro o status pleno de cidadania a que tem direito. A revista Veja publica na edição do final de semana uma pesquisa exclusiva cujo diagnóstico é cruel: o Brasil é um país com muito racismo e poucos racistas. Estes últimos são classificados entre os que se dizem não-racistas, embora se saiba que praticam o racismo disfarçado. Os dados oficiais mostram que os negros vivem pior porque são negros e não porque são pobres. Joaquim Nabuco dizia que a escravidão tende a permanecer por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Figura-chave do movimento abolicionista e membro da plêiade dos chamados “intérpretes do país”, ele acreditava que não bastava acabar coma escravidão, era preciso pôr fim à sua herança.
A reportagem da Veja diz que o episódio do jornalista William Waack, afastado do Jornal da Globo depois de ser flagrado dizendo “é coisa de preto” ao se referir a alguém que buzinava sem parar perto do local em que ele falaria ao vivo, jogou luz em um tema que insiste em permanecer nas sombras: o racismo à brasileira. E com ele brota uma espinhosa questão: o que é ser negro neste país? Os indicadores socioeconômicos mostram os afrodescendentes vivendo em franca desvantagem em relação aos brancos – só tendo sido mais valorizados na última década no que se refere ao ensino universitário em razão da adoção das cotas. Acrescenta Veja: “É verdade que a conscientização da existência no Brasil de discriminação baseada na cor da pele se tornou quase uma unanimidade. 98% dos entrevistados na pesquisa Abril/MindMinders admitiram que, sim, há racismo no Brasil. Porém, apenas 1% dos participantes puderam ser classificados como “muito preconceituosos”. Ocorre que 72% dos negros afirmaram já ter sofrido algum tipo de discriminação. Mas o intrigante paradoxo revela, de novo, o Brasil dissimulado: um país de muito racismo e poucos racistas.
Em todos os indicadores de qualidade de vida e de participação na sociedade, a população preta e parda, resumida, nas pesquisas do IBGE, no grupo “negros”, aparece em franca desvantagem em relação aos brancos, situação que pouco mudou na última década. Seja como for, a tendência é que haja, mais do que uma conscientização plena sobre o vergonhoso preconceito racial, a adoção de medidas efetivas e implementação de políticas públicas que eliminem essa chaga que é uma herança de tempos medievais e que não se justifica nem é aceitável depois de tantos movimentos, batalhas e um sem número de estudos e debates a respeito da problemática.
Nonato Guedes