Aos 21 anos, tive o dia mais feliz da minha vida até então: fui diagnosticado com depressão clínica. Não é uma tentativa de fazer graça. Qualquer um dos 11,5 milhões de brasileiros (segundo a ONU) que sofremos de depressão pode garantir que este é um dia de alívio.
Saber o que está acontecendo é o primeiro vaga-lume dentro do túnel escuro e frio. Você nasce, fica criança, dá umas gargalhadas, encanta os parentes, faz amiguinhos na escola… Até que um dia não sai para brincar na rua, fica em casa perguntando se seu bonequinho está triste porque a mãe dele não está por perto e começa a chorar porque ele não responde. E por aí vai.
Um dia, mais tarde, sua alma está oca e nem as lembranças ternas da infância dobram o canto da sua boca para cima. Ela se instalou.
Sobre o primeiro episódio de esperança no túnel, eu preferi vaga-lume à proverbial “luz no fim” não por alguma tentativa de ser poético, Deus me livre; é que a primeira luz só vai aparecer, pálida, lá pelo ponto em que os primeiros tratamentos, sejam eles remédios ou terapia, comecem a fazer efeito. Mas o tempo passa e o céu se abre.
Uma coisa cômica na depressão quando se é veterano (estou nessa há 14 anos) é o dia em que você percebe que não adianta andar em direção ao fim do túnel. Todo dia constroem mais túnel no fim do túnel, então o único jeito é continuar andando.
Por isso acho que é mais jogo rir da depressão, mesmo durante a crise (isso exige prática e uma saudável falta de pudor em parecer louco).
Gosto de uma equação do professor de meditação americano Shinzen Young que diz: sofrimento é igual à dor multiplicada pela resistência. Resistir no sentido de fazer oposição à existência do sofrimento. Em português: aceita que dói menos. Porque, quando os dias ruins aparecem com duas malas sem avisar, você tem menos chances de se degenerar numa crise existencial quando não tenta discutir com os pensamentos ruins. Quando não os leva a sério.
Outra coisa engraçada da depressão é que, uma vez fora da crise, é divertido lembrar de quando até mexer as pernas começava a ser um incômodo. Não estou falando de andar, me refiro a quando você está preso à cama e o atrito das pernas contra o lençol inspira uma surpreendente vontade de chorar. Aconteceu comigo algumas vezes. Seja sincero: isso é hilariante.
E damos graças ao diagnóstico porque ele pode ser nossa desculpa para ser esquisito sem culpa. Ele é uma espécie de distintivo que você pode começar a usar dentro de casa sem ser incomodado. Se sua tia vier perguntar por que você não toma banho há três dias e está comendo sorvete direto do pote no sofá de cabeça para baixo, é só dar uma carteirada: “Você sabe com quem está falando? Eu tenho depressão clínica! Olha na Wikipedia. E pega pra mim um Cheetos daquele que fede e suja o sofá todo”. (Nos Estados Unidos é melhor ainda. Lá o nome da doença é general depression e você já começa com uma patente militar altíssima).
O pior diabo é aquele que você não conhece, diz uma máxima que devo estar citando errado. Flutuar no caldeirão de neuroses de um episódio depressivo pela primeira vez é uma das piores sensações que eu já tive. Você pesquisa a internet e em pouco tempo contraiu (na imaginação) câncer no cérebro, esquizofrenia, síndrome do pânico, doença de Chagas, infarto no miocárdio e medo de avião. Pede ajuda aos pais e ouve que a filha da vizinha da sua tia perdeu a mãe aos dois anos, foi atropelada, esfaqueada e atropelada novamente, o cabeleireiro destruiu seu cabelo com uma chapinha de formol e ainda assim ela tem três empregos e cursa duas faculdades.
Depois do diagnóstico e dos primeiros passos, depois de ter de se tornar um ser humano um pouquinho melhor (inclusive se levando menos a sério) para sobreviver, você consegue até rir dos desavisados que dizem coisas como “mas ontem você parecia tão bem” e “você também precisa se esforçar!”.
Meu amigo, você não sabe o esforço que eu já tive que fazer para não enfiar uma chave de fenda no meu tímpano quando você fez a cara de quem ia falar essa frase.
Acredito que nós, brasileiros, atingimos há muito tempo a autossuficiência em ignorância sobre os transtornos mentais. A depressão é a cabeça de chave, mas pouco se fala sobre a ansiedade, o estresse pós-traumático (num país mais violento que zonas de guerra), síndrome do pânico, fobias etc. Fazer piada banaliza e ajuda a diminuir o estigma.
Os antidepressivos, usados em praticamente todos esses transtornos, são os segundos na fila de remédios mais vendidos no Brasil, só atrás dos analgésicos. E as pessoas ainda cochicham a respeito. A depressão é uma doença que, se não tratada, tem muitas chances de terminar em suicídio. No Brasil, são 30, em média, por dia. Mais que as vítimas de Aids e da maioria dos casos de câncer.
Acredito que o tabu deve ser atacado com pressa e até hoje não conheci nada melhor que uma piada para desmoralizar algo. Numa sociedade evoluída, o humor fala sobre as coisas que as pessoas pensam mas não dizem, seja por preconceito ou pressão social.
Vamos, portanto, rir da desgraça. Desde que você, claro, já tenha buscado um psiquiatra, uma terapia e esteja em tratamento. Quando a coisa não estiver nem um pouco divertida (você sabe do que eu estou falando), tente encontrar alguém com senso de humor no Centro de Valorização da Vida em todas as redes sociais e no telefone 188. Fale, não importa com quem seja.
Num caso extremo, vá a uma emergência hospitalar. Queremos você contando como chegou lá de moletom sujo de molho de tomate, um tênis de cada cor e fingiu estar tendo um ataque cardíaco para não ter que conversar com alguém na fila.
POR MARCELO ZORZANELLI – jornalista e um dos autores do site Sensacionalista