Ao ensejo da recordação, hoje, dos 33 anos da morte do ex-presidente Tancredo Neves, estudiosos de História e líderes políticos enfatizaram a circunstância dramática com que o vice-presidente José Sarney se investiu no cargo no dia 15 de março de 1985, em cuja madrugada Tancredo foi hospitalizado e operado às pressas. O cargo foi entregue a Sarney na condição de interino e a frustração era geral. No livro A História do Brasil em 50 Frases, Jaime Klintowitz destaca que o cargo, os ministros, o discurso e o entusiasmo popular eram de Tancredo. Sarney era um estranho no ninho, uma peça adicionada por necessidade à minuciosa articulação montada por Tancredo para a transição para a democracia.
– O presidente eleito diz Klintowitz amargara 21 anos na oposição ao regime de exceção. O vice mudara de ninho poucos meses antes, depois de comandar o PDS, partido de sustentação da ditadura. Na convenção do PMDB que sacramentara a chapa que concorreria nas eleições indiretas contra Paulo Maluf, Sarney até evitou discursar, temendo ser vaiado. Depois da vitória no Colégio Eleitoral, Tancredo viajou para o exterior e se encontrou com chefes de Estado, numa estratégia para demonstrar ao mundo que o processo de redemocratização no Brasil era irreversível. Começou a sentir as dores e o desconforto da doença no dia 8 de março, mas preferiu escondê-la de todos. No dia 13, foi examinado pelo chefe do serviço médico da Câmara, Renault Matos Ribeiro, que recomendou cirurgia imediata. Tancredo preferiu deixar a operação para depois da posse. Em 14 de março, véspera da posse, ele se sentiu mal durante a missa em ação de graças em sua homenagem no Santuário Dom Bosco, em Brasília. Era celebrada por seu primo, dom Lucas Moreira Neves, bispo da Cúria Romana e por quatro arcebispos. Foi sua última aparição pública. Antes de ir para o hospital, Tancredo tomou o cuidado de assinar uma por uma a nomeação dos ministros e mandou que fossem publicadas imediatamente. Não queria correr o risco de deixar a tarefa para Sarney.
Jaime Klintowitz conta que Tancredo foi internado à noite no hospital de Base de Brasília. O primeiro diagnóstico divulgado foi o de apendicite. A cirurgia ocorreu no início da madrugada seguinte. Na manhã da posse, os médicos divulgaram um novo diagnóstico: o presidente eleito sofria de diverticulite de Menkel, uma doença cujos sintomas são condizentes com as fortes dores abdominais que sentia. Era falso, inventado para iludir e tranquilizar o Brasil. O economista Ronaldo Costa Couto, que havia sido secretário do Planejamento de Tancredo em Minas e fora nomeado ministro do Interior, escreveu que o caso era de abdômen agudo cirúrgico. Depois se veria que era inflamação de tumor benigno, um leiomioma, problema que poderia ser resolvido com uma cirurgia simples. Conspirou contra a saúde do presidente uma série de barbeiragens, segundo Ronaldo Costa Couto.
Contra as normas e recomendações, a cirurgia teria sido assistida por trinta ou quarenta pessoas, dependendo da fonte de informação. Do ponto de vista médico, pouquíssimos tinham por que estar no próprio centro cirúrgico. Muito menos na disputada sala de cirurgia, onde o excesso de pessoas, a negligência com os procedimentos obrigatórios de prevenção e a situação específica do hospital multiplicaram os riscos de infecção. E Tancredo morreria exatamente de infecção generalizada. À desastrada operação na madrugada seguiram-se 38 dias de agonia, 27 dos quais com o presidente eleito internado no Instituto do Coração, em São Paulo. Foi operado sete vezes e dado como recuperado pelos médicos em três ocasiões numa delas, uma junta médica chegou a encenar uma fotografia com a pretensão de mostrar que Tancredo estava melhor do que na realidade. O neto Aécio Neves contou que nos dias finais, debilitado e sofrendo com as dores causadas por tubos, suturas e cateteres, Tancredo expressou um derradeiro lamento: Eu não merecia isso.
Tancredo Neves morreu em 21 de abril de 1985. O simbolismo da coincidência de datas com a do enforcamento de Tiradentes não escapou aos mineiros. O Brasil homenageou Tancredo com um dos maiores funerais da história, só similar ao de Getúlio Vargas em 1954. Estima-se que entre São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del Rey, onde foi sepultado, seu esquife foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas. Conclui Jaime Klintowitz: O primeiro presidente civil depois de 21 anos de trevas deveria ter subido a rampa do Palácio do Planalto em 15 de março para a celebração da esperança de um recomeço para o Brasil. Subiu 38 dias depois, dentro de um caixão levado nos ombros de cadetes das Forças Armadas. Em lugar da festa, um velório.
Nonato Guedes