Para quem deseja conhecer melhor Luiz Inácio Lula da Silva, que faz um contorcionismo danado para parecer verdadeiro e autêntico como líder dos trabalhadores no Brasil, é indispensável ler o depoimento de César Benjamin, o Cesinha, inserido no livro 1968 O que fizemos de nós, de Zuenir Ventura. Cesinha foi o mais jovem militante da geração 68 aos 14 anos já entrava para a clandestinidade e para a luta armada. Aos 17, alfabetizava camponeses no interior da Bahia, onde foi preso. Depois de torturado, foi recolhido a uma solitária e submetido a um completo, absoluto, isolamento, durante três dos cinco anos que passou na prisão, de 1971 a 1976. Esteve exilado na Suécia e voltou em 78, atraído pelo clima de distensão e pelo que ocorria no ABC paulista, onde os operários da indústria automobilística iniciavam uma série de greves históricas, comandados por um desconhecido barbudo chamado Lula. Com Lula, ele acabou participando da fundação do PT, do qual foi ativo militante e dirigente até 95, quando saiu fazendo sérias acusações à direção do partido, sem poupar Lula.
Conforme Zuenir, dificilmente se encontra na oposição quem faça críticas tão contundentes aos governos petistas quanto o dissidente Cesinha, que avalia como um fracasso o chamado ciclo Lula. O que ele não perdoa mesmo no PT e na esquerda atual é a perda de grandeza. A Zuenir, Cesinha afirmou: Podemos fazer todas as críticas que quisermos ao Prestes, ao João Amazonas, ao Marighela, ao Mário Alves, ao Gregório Bezerra, mas cada um deles foi exemplo de dignidade. Prestes morreu pobre, num apartamento que o Niemeyer deu ou emprestou para ele morar. O Apolônio de Carvalho morreu com o seu soldo de coronel da resistência francesa num apartamento de classe média. O João Amazonas morreu dignamente como secretário-geral num partido que ele fundou. Esses caras deixaram um legado para a esquerda, e o PT destruiu. Não perdoo nem o PT nem meus companheiros, porque fui o único quadro da esquerda que disse: Em nome desse legado não me junto a isso.
Cesinha começou a vestir a camisa do PT com entusiasmo na campanha presidencial de 89, quando Lula começou com 2,5%. Chegou a 49%, mas, paradoxalmente, foi no fim dessa campanha que acendeu em Cesinha a luz amarela com o Lula. Na reta final da campanha, houve o episódio da grosseira manipulação do debate Lula versus Collor na Globo. No dia seguinte, os petistas, Cesinha no meio, fizeram uma manifestação de protesto na porta da emissora, uns 8 mil militantes. A edição do debate foi numa sexta à noite, a manifestação foi no sábado, no domingo foi a eleição. Collor venceu por pequena margem, e a edição do debate foi considerada decisiva para esse resultado. Nos dias seguintes, Cesinha foi para São Paulo. Lá, logo depois dessa sequência de eventos, encontrou o Lula, que lhe disse:
– Cesinha, sabe quem me ligou anteontem? O Alberico, da Globo.
Alberico Souza Cruz, conforme os jornais haviam noticiado, foi justamente quem fez a montagem do debate de Lula com Collor. Cesinha ficou calado e Lula prosseguiu: Jantei com eles ontem. Derrubamos três litros de uísque. Conta Cesinha: Aquilo doeu. Enquanto colocávamos 8 mil militantes na Globo, a nossa maior liderança jantava e bebia com a direção da emissora. Ele se justificou: Não vou brigar com a Globo, não é, Cesinha?. Ali me acendeu uma luz amarela, algo estava muito errado. O Leonel Brizola estava se expondo publicamente, contestando a Globo e defendendo o Lula, enquanto o Lula jantava com a direção da Globo, escondido. Hoje compreendo que naquele momento o Brizola começou a ser destruído definitivamente, e o Lula, demonstrando uma espinha muito flexível, começou a desbloquear sua carreira política. Eu não exigiria que ele hostilizasse a Globo, poderia fazer qualquer coisa, mas não derrubar três litros de uísque com eles naqueles dias. Isso me pareceu falta de dignidade pessoal.
Cesinha relatou a Zuenir que tinha uma explicação para isso. Hoje compreendo o que aconteceu. A partir de 89, o Lula passou a ter uma difícil equação política para resolver. Queria ser presidente, e para isso precisava ter um partido político suficientemente forte para sustentar essa pretensão. Mas esse partido não podia ser aquele que havíamos construído, um partido vivo e militante. Com aquele PT, ele seria sempre vetado pela elite do país, como foi em 89. Se queria chegar à presidência, demonstrando-se confiável, precisava transformar o partido em outra coisa. Foi quando o Zé Dirceu ganhou importância. Porque era o grande operador dessa transformação. O Lula não é operador. A dobradinha que se formou atendia aos dois ao Lula, porque a destruição do PT militante pavimentaria o seu caminho à presidência, na condição de candidato dos de cima, o que ele sempre quis ser; ao Zé Dirceu, pois, se tudo desse certo, ele seria o sucessor natural do Lula. Houve uma combinação de interesses, que exigia um processo de desmontagem do PT. Esta é a mais perfeita tradução do Lula, e do PT.
Nonato Guedes