O portal Comunique-se! disponibilizou para jornalistas, seu alvo preferencial, mas para o público em geral, excertos de debates entre candidatos a presidente da República na campanha de 89, quando tivemos a primeira eleição presidencial direta pós-ditadura militar ou longa noite das trevas. Um dos pontos altos desse debate foi o bate-boca travado pelo inefável Paulo Maluf e pelo polêmico Leonel Brizola. A campanha, sabemos todos, teve uma pletora de candidatos e o segundo turno colocou frente à frente, nas urnas, Fernando Collor de Melo e Luiz Inácio Lula da Silva. Deu Collor, alvo de impeachment em 92 por associação com o esquema PC Farias, seu ex-tesoureiro, que produziu uma combinação perigosa de dinheiro público com dinheiro privado, este resultante de achaques a empresários ou devedores do governo.
Revendo aquelas cenas, com o ar de dramaticidade e empolgação que carregavam, até porque Maluf e Brizola situavam-se em campos diametralmente opostos no território ideológico, ocorreu-me atentar para a cereja do bolo da porfia democrática. Era Marília Gabí Gabriela, uma das mais talentosas jornalistas do Brasil e do mundo, cuja fluência e densidade intelectual intimidavam quaisquer entrevistados. No debate, Gabí atuou como mediadora e, como os ânimos estivessem excitados entre Maluf e Brizola, restou-lhe a saída mais em conta: chamar o intervalo comercial, a fim de restabelecer a ordem na casa e chamar o feito à ordem, equivale dizer, enquadrar nos limites da civilidade ou urbanidade os dois brigões que por pouco não se atracavam fisicamente no metro quadrado do estúdio de onde foi gerada a transmissão.
Bons tempos aqueles porque sinalizavam, concretamente, o retorno da democracia, depois da angústia dos Atos Institucionais, que, na prática, constituíam atos de exceção, elaborados por mentes doentias que intentavam manter-se pela força, não pela democracia. Dá para notar o visível desconforto de Maluf quando chamado de filhote da ditadura por Leonel Brizola. E o era, sim, bastando lembrar o confronto entre Maluf e Tancredo em 1985 no Colégio Eleitoral, por via indireta, num momento em que a oposição institucional tentava matar a cobra com seu próprio veneno. Mas, noves fora a arrogância de Maluf e, em paralelo, a sua condição indiscutível de filhote da ditadura militar-civil instaurada em 1964, é conveniente realçar o brilhantismo retórico do ex-governador de São Paulo no embate áspero com Brizola. Maluf chegou a dizer que Brizola voltara ao país, nas asas da anistia, sem ter aprendido a corrigir seus erros. Ainda que recauchutado pelo figurino do socialismo moreno, Brizola era, sem tirar nem pôr, a expressão remanescente do radicalismo que em 64 situou-o historicamente na posição de incendiário, apesar de estancieiro.
Dá uma saudade danada rever aqueles debates porque neles, com Marília Gabriela ou com Bóris Casoy ou com os mediadores da Rede Globo, fazia-se jornalismo eloquente no Brasil. Com o tempo, o formato adotado ou imprimido foi engessando os debates. A fórmula de anular praticamente a figura do mediador, que tem apenas a missão de chamar postulantes para indagarem-se entre si e responderem entre si às perguntas formuladas, perdeu pontos junto ao público. Há repercussão, é claro, mas nada se compara ao que havia antigamente e, quando falo antigamente, refiro-me a tempos muito próximos, não a tempos remotos. Deixo apenas uma ilação que assimilei há bastante tempo: debate é moedor de carne. E pode, sim, decidir eleições, sobretudo quando estão acirradas.
Nonato Guedes