No livro intitulado JK e a ditadura, em que descreve os passos difíceis percorridos pelo ex-presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira depois da eclosão do movimento militar de 64, o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony relata que uma cópia da carta-renúncia de Jânio Quadros em 1961, em poder de Pedroso Horta, figura notável do governo, foi entregue ao jornalista Murilo Melo Filho, da revista Manchete. Este, por sua vez, rumou para a Câmara Federal e, pelo caminho, esbarrou com o paraibano Abelardo de Araújo Jurema, que foi líder do governo JK e ministro da Justiça de João Goulart.
– O senhor quer entrar para a História? Leia esse documento da tribuna! concitou Murilo no encontro com Jurema. Jurema preferiu outra oportunidade para melhor entrar na História, e, mesmo assim, levou a carta até a tribuna onde Dirceu Cardoso falava sobre problemas de seu Estado, o Espírito Santo. Numa das pausas do pronunciamento, deu-lhe o documento. Dirceu olhou a assinatura e avisou que iria fazer uma grave revelação. Foi assim que a Câmara tomou conhecimento da carta de Jânio, que, na verdade, era mais um de seus bilhetinhos o último, por sinal. Ao Congresso Nacional. Nesta data, e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República. A carta estava datada de 25 de agosto de 61. Houve rebuliço na Câmara quanto à aceitação ou não do ato de renúncia.
Habilidoso, o político mineiro José Maria Alkmin cuidou de lançar uma interpretação legal e oficial sobre o caso, que acabou prevalecendo. Sustentou que a renúncia era unilateral e, portanto, não competia ao Congresso deliberar aceitando ou negando um desejo de foro íntimo do presidente da República. A tática funcionou. Pouco depois de ter recebido o original da carta-renúncia, Auro de Moura Andrade reuniu o Congresso e declarou vaga a Presidência, convocando o presidente da Câmara, Paschoal Ranieri Mazzilli, segundo nome na linha sucessória, a assumir o poder. Houve ensaios de movimentação de partidários de Jânio para que a carta-renúncia não fosse levada em conta. Tais manobras, entretanto, não surtiram o efeito desejado. A renúncia de Jânio, até hoje, desperta múltiplas interpretações e polêmicas. Na prática, ele deixou Brasília amargurado e foi para São Paulo, onde pegou um cruzeiro para a Europa.
O vice-presidente João Goulart, que era hostilizado por militares, estava na China em missão oficial quando foi comunicado da renúncia de Jânio e aconselhado a voltar ao Brasil imediatamente. No âmbito interno, chefias militares opunham-se à investidura de João Goulart, tido como comunista. A posse acabou acontecendo em meio a uma solução negociada que fixava a redução dos poderes de Jango, com a adoção do Parlamentarismo. Aceita num primeiro momento, a fórmula ocasionou fortes reações e fez-se um plebiscito para decidir se a preferência da maioria dos brasileiros era pelo Parlamentarismo ou pela continuidade do Presidencialismo. A bandeira presidencialista ganhou de lavada no referendo, mas Jango, se ganhou, acabou perdendo o poder. Em 31 de março de 64 ele foi deposto do cargo e instalou-se um regime militar que durou cerca de 21 anos. Abelardo Jurema exilou-se em países como o Peru. Jango também partiu para o exterior, com escala inicial no Uruguai. O chamado golpe se deu sem derramamento de sangue, o que era da índole de João Goulart, mas a democracia foi ferida de morte com a eclosão do golpe militar, que cometeu excessos, puniu políticos e impôs medidas abusivas, gerando descontentamento na população.
Nonato Guedes