A intérprete de libras Karina Zonzini Bueno, paulistana, de 40 anos, escreveu um depoimento para a revista Época sobre o seu trabalho de traduzir, na linguagem dos surdos, o que os candidatos à Presidência da República dizem nos debates da TV. Na íntegra, o seu depoimento, que inclui avaliações pessoais sobre candidatos:
Sou Karina Zonzini Bueno, de 40 anos, paulistana, casada, mãe de um filho de 19 anos, toda tatuada, adoro maquiagem e trabalhei no último debate presidencial da RedeTV! Todo mundo tem a visão de que o intérprete de libras tem de ser um picolezinho de chuchu, quadradinho, mas não. Faço meu trabalho e imponho minha personalidade. Cursei pedagogia, especializei-me em libras e hoje tenho uma ONG que presta assistência jurídica para surdos com meu marido, Matheus, que também é surdo. Ele é meu maior algoz. Gelo de medo de fazer um sinal errado na telinha e levar um puxão de orelha em casa. O debate da RedeTV! foi meu quarto. Fiz outros três, em 2014: um presidencial e os outros dois para os governos de São Paulo e Rio de Janeiro. Sem dúvida, este último foi mais difícil pela quantidade de candidatos e pelo pouco tempo de cada um. Eles estão vindo com sangue nos olhos e querem, ao mesmo tempo, se defender, atacar e falar de propostas. Na hora de réplicas e tréplicas, de apenas 30 segundos, isso foi visível. Eles botam tudo no liquidificador e temos de sambar.
Foi desgastante do ponto de vista físico e psicológico. Temos de ter um raciocínio muito rápido e a mãozinha precisa acompanhar o pensamento. Fazemos a função de um cirurgião de pronto-socorro e de pedreiro: temos de pensar muito rápido, senão perdemos uma vida e temos de ter uma força absurda para levantar uma viga. No último debate, o principal desafio foram os bate-bocas. Quando duas pessoas falam ao mesmo tempo, é um pesadelo, pois tenho de escolher uma para interpretar. Sou uma pessoa só. Outro complicador são os termos técnicos ou que exigem contexto. Exemplo: uma PEC número tal. Na interpretação, o número apenas não diz sobre o conteúdo. Transmito as letras, P-E-C e o número, mas também gosto de comunicar de que se trata. Palavras em outra língua também dificultam, pois temos de fazer duas traduções. Exemplo: do inglês para o português e do português para libras. Pensando nos perfis dos candidatos, o pior tipo é aquele do discurso muito pausado como o Geraldo Alckmin ou a Marina Silva que fala e vai pensando no que fala. Ficamos parados na TV, esperando a Marina falar uma frase curta, para começar a sinalizar. Não sinalizamos palavra por palavra, porque senão fica um monte de sinais jogados. O Cabo Daciolo também foi complicado, porque a todo instante ele fazia referências a Deus. Temos um processo de interpretação e aí temos de cortar a frase no meio, colocar o Glória a Deus e continuar o processo. Não sabia,às vezes, se colocava o Glória a Deus no começo, no meio ou no fim.
Para interpretar, prefiro um perfil mais britadeira, com uma fala que é uma rajada, como a de Jair Bolsonaro ou a do Ciro Gomes. O Ciro, especificamente, é muito coeso e rápido. Quando ele passa a informação, passa de forma assertiva. É como manteiga escorregando na torrada fácil e gostoso de interpretar. Na hora do debate, ficamos em um espaço diferente do estúdio principal, ao lado, com uma equipe própria de câmera e luz. É uma lógica não usual à emissora, mas é relevante considerando o universo de 9 milhões de surdos no país. Às vezes amigos surdos me perguntam em quem eu votaria. Tento me manter neutra. Claro que tenho minha opinião, mas não posso transmitir isso porque é o momento de os surdos terem sua própria opinião. Por muito tempo eles votaram no candidato estampado no santinho dado pela mãe ou no que doara uma dentadura para a avó. Eles eram coagidos a votar. Agora, têm a oportunidade de expressar sua própria opinião. Isso é isonomia. Queremos pessoas pensando por si, capazes de construir um conceito e brigar por ele.
Da Redação, com Época