Na carta entregue ao ministro da Justiça, Jânio Quadros atribuía a renúncia à presidência da República à pressão de forças terríveis. Em edição extraordinária, o Repórter Esso, jornal radiofônico de maior audiência em 1961, trocou para forças ocultas. Jânio morreu 31 anos mais tarde, em 1992, sem se conformar com a troca de adjetivos. Terríveis ou ocultas que diferença faz? Nenhuma dessas palavras ajuda a entender o gesto do presidente que, sete meses depois da posse, pediu para sair. A melhor explicação ainda é Fi-lo porque qui-lo, outra frase que tirava Jânio do sério, Ele negava com vigor ser autor de tal barbarismo. Era um perfeccionista do idioma e jamais diria algo gramaticalmente tão errado. Jânio sabia que o porque atrai o pronome. Logo, a frase correta teria que ser fi-lo porque o quis.
Uma paródia evidente, cuja autoria é difícil de precisar. A graça está em emular a linguagem erudita, um tanto ridícula, cheia de mesóclises e ênclises, adotada pelo político. Nem por isso deixa de ser uma interpretação correta. Jânio fê-lo porque quis aplicar um autogolpe. Ele queria implantar uma ditadura civil, governar sem o embaraço de lidar com um Congresso hostil. Para o populista que pensou ter todas as cartas na mão, foi um tremendo fiasco. Para o país foi uma desgraça. A renúncia desencadeou a sucessão de crises que levou à morte da democracia em 1964. Jânio jamais se desculpou.
Entre as várias maneiras de alguém entrar para a História, Jânio escolheu a mais cômica, escreveu o historiador paulista Francisco Iglésias. Em que momento da vida ele terá percebido o potencial político de seu talento histriônico? Jânio João Quadros nasceu em Campo Grande, no que hoje é o Mato Grosso do Sul, filho de um médico e de uma dona de casa. Jovem, trocou o João pelo da Silva. A adoção do sobrenome popular foi o primeiro gesto conhecido da figura política que montaria com esmero de ator. O sotaque peculiar, que não existia em lugar algum, ele inventou ainda estudante em Curitiba. Outros recursos cênicos, como roupas desleixadas e cabelos desalinhados, surgiram durante o curso de Direito na Faculdade do Largo do São Francisco em São Paulo.
Tentou, sem sucesso, entrar para o Itamaraty. Reprovado por critérios estéticos, ele dizia. Foram seus alunos no Dante Alighieri, colégio da elite paulista onde ensinou Geografia, que tomaram a iniciativa de lançá-lo candidato à Câmara de Vereadores em 1947. Nos 13 anos seguintes, Jânio percorreu o universo político com impulso de rojão. Foi deputado estadual, prefeito da capital paulista, governador de São Paulo, deputado federal e presidente da República. Só completou um mandato, o de governador. O político Jânio Quadros era avesso a partidos. Elegia-se por coalizões improvisadas, sem se ater a nenhuma agremiação, sem ligar para ideologia. Confiava mais no instinto e no talento cênico. Seus discursos giravam em torno de dois temas de eterno apelo eleitoral: o combate à corrupção e a má qualidade da gestão pública. Ao deixar o Palácio dos Bandeirantes em 1959, ele consolidara a imagem de administrador incorruptível.
Na campanha para presidente, Jânio se apresentou como o candidato solitário contra a coligação de partidos poderosos, o defensor dos interesses dos mais pobres. O bordão tostão contra milhão era reforçado pelo terno desalinhado e salpicado de caspa, pelo sanduíche que comia no palanque, simulando falta de tempo para uma refeição decente. No final dos comícios apresentava a mulher, Eloá, que não abria a boca. Minha mulher pediu-me que dirigisse as últimas palavras à mulher brasileira, a verdadeira dona da vassoura, discursava. Aquela que sofre no trabalho permanente do lar, que deve equilibrar as contas de salários de miséria. Soa patacoada, mas encantou o eleitorado feminino. Jânio foi eleito presidente com 5,6 milhões de votos, 48% do total, contra um candidato enfadonho, o general Henrique Teixeira Lott. O vice-presidente, eleito à parte, era João Goulart, do PTB. Era o primeiro presidente a tomar posse em Brasília e encarnava as esperanças no futuro, que logo se desfizeram. Nos 204 dias em que esteve na presidência, o Brasil viajou numa montanha-russa monitorada por um homem que obedecia exclusivamente ao instinto. Ele foi a UDN de porre no governo, resumiu Afonso Arinos de Melo Franco, seu ministro de Relações Exteriores, emendando: Faltou alguém trancá-lo no banheiro. Jânio morreu em 16 de fevereiro de 1992. Para desespero da família, levou para o túmulo o número da mítica conta bancária na Suíça. Além dele, só Eloá, que morreu dois anos antes do marido, sabia do segredo e também nunca o revelou.
Por Jaime Klintowitz – autor de A História do Brasil em 50 frases