Lembram-se dos governadores biônicos, escolhidos por generais no período da ditadura para administrarem Estados, numa época em que o voto deixara de ser moeda corrente? E, pior ainda, dos senadores biônicos, que, no dizer do ex-presidente Ernesto Geisel, seriam figuras quase nunca íntimas do sufrágio popular mas inteligentes acima da média e, portanto, imprescindíveis à redação das leis e ao debate parlamentar? Tivemos essas excrescências e tal menção não é a todas as figuras. Aqui mesmo na Paraíba, Tarcísio Burity entrou na política como biônico, sacramentado pela cúpula militar em Brasília diante do impasse envolvendo a disputa entre Milton Cabral e Antônio Mariz. Já em 82, Burity testou-se nas urnas, elegendo-se deputado federal com expressiva votação. E em 86 voltou ao governo do Estado pelo voto, com diferença de quase 300 mil votos sobre Marcondes Gadelha. Tudo isso vem a propósito da articulação feita atualmente em Brasília para que ex-presidentes da República sejam senadores vitalícios e tornem-se consultores legislativos, com imunidade criminal. É a jogada que se ensaia para favorecer Michel Temer, já no apagar das luzes do pífio governo e que teme enfrentar os tribunais tão logo deixe a cadeira do Planalto. Diante de coisas assim, chegamos a pensar que o Brasil não se emenda nunca.
Burity era versado em Filosofia do Direito, intelectual respeitado e, ainda por cima, antenado com os avanços e conhecedor da realidade da Paraíba e do Nordeste. Mesmo tendo sido indicado ao governo em 78 por via indireta, desobedeceu às imposições da ditadura militar e preconizou, em entrevistas a jornais do sul, a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, além de defender eleições diretas em todos os níveis, inclusive, para presidente da República. Longe de parecerem demagógicas essas posturas de Burity, elas refletiam o pensamento arejado de um intelectual que assimilara com certa rapidez os meandros do jogo político e mantinha-se com um pé calcado na voz rouca das ruas. Ele pressentia a exaustão do ciclo militar e notava a própria dificuldade intestina dos presidentes-nomeados em se adaptar à conjuntura que, de início, se chamou de distensão, para culminar na popular abertura política.
Fica evidenciado que Burity não deslustrou a sua passagem pela vida pública da Paraíba, ainda que se discordasse eventualmente de algumas posições ideológicas que ele expressava e que batiam na sementeira da direita não da extrema-direita ensandecida, com a qual nunca perfilou. Disse a mim, num depoimento para o jornal O Estado de São Paulo, que repudiava tanto o comunismo como o fascismo e o nazismo. Quando um ex-pracinha na Paraíba desencadeou movimento para forçar Burity a retirar do Palácio da Redenção mosaicos que lembravam a suástica nazista na verdade, arabescos colocados talvez ao tempo da Segunda Guerra Mundial, Burityresistiu e assim se explicou: Não creio que, em retirando esses símbolos, vá mudar o curso da História. A tarefa acabou ficando para Antônio Mariz, O Breve, que confessou sentir-se mal com a visão que tinha dos arabescos espalhados da cantina da Guarda à ante-sala do gabinete do governador no Redenção.
Burity, queiram ou não, foi uma grata exceção no universo dos líderes forjados sem voto na esteira das decisões autoritárias dos generais-presidentes que se investiram com a deposição de João Goulart em 64. Mas, o que dizer de Paulo Maluf, também apadrinhado do sistema biônico, e que deu origem a um verbo malsinado malufar, sinônimo de roubar? Sem falar em inúmeras nulidades que pontificaram pelos poderes estaduais, da Paraíba ao Maranhão, deste ao Distrito Federal, no Centro-Oeste. Foi uma fase, acreditávamos. E estávamos enganados. Ainda estamos, a julgar por essa malandragem do Temer para tornar ex-presidentes da República senadores vitalícios atuando como consultores legislativos. O motivo em pauta, agora, é mais vergonhoso, ainda: beira a seara criminal. Trata-se de dar imunidade vitalícia a políticos que, como Temer, tão logo deixem a presidência, terão que responder por abuso de poder, improbidade administrativa e outros atos nada católicos cometidos na administração. Que essa artimanha não passe. O País não suporta mais retrocessos!
Nonato Guedes