Nada como ter bons arquivos guardados ao alcance da mão. No livro Década Perdida Dez Anos de PT no Poder, Marco Antonio Villa descreve a apoteose que cercou a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, para o primeiro mandato. A mídia quedava-se, genuflexa, ao operário que cometera a façanha de nocautear elites carcomidas valendo-se do caminho do voto. Diz Villa: Para os ufanistas tupiniquins, era como se a senzala tivesse, depois de séculos, ocupado democraticamente a casa-grande. Ninguém imaginou que se tratava de um processo muito mais complexo. Em vez da ruptura, a continuidade do que havia de mais arcaico na ordem senhorial brasileira. Quem assumia a direção da casa-grande era um novo senhor, demasiadamente mais arguto que os anteriores.
A cobertura da imprensa reforçou a falácia de que o país vivia um momento inigualável na sua história. O Globo concedeu mais de uma dúzia de páginas ao evento. De acordo com Tereza Cruvinel, o povo esteve no centro da cena como em nenhuma outra posse, carnavalizou a solenidade e lavou a alma. Mais à frente, no mesmo jornal, Lula era descrito da seguinte forma: Ele é um chorão, para desespero dos médicos adora rabada e uma cachacinha e já andou avisando: em vez de périplos pelo circuito Elizabeth Arden (Paris, Roma, Londres e Nova York)prefere viajar pelas entranhas do Brasil. Ah, a ingenuidade jornalística. Só no primeiro ano de governo, Lula viajaria ao dobro de países visitados por Fernando Henrique Cardoso: 28 países, pontua Marco Antonio Villa. A revista Veja, sempre contida, entrou no embalo da euforia. Um dia para a história resumiu muito bem o espírito da cobertura. Exaltava-se Zé Dirceu, e um filho era louvado assim: alto, loiro, simpático, desimpedido (…) que não vai ficar em Brasília, para desconsolo das pretendentes em potencial, pois o pai o aconselhou a não abandonar a empresa de informática que montou.
A transformação de Lula no Dom Sebastião do século XXI contou com o empenho de muita gente, de dentro da sua equipe e de fora, nos nichos onde se presumia haver equidistância ou isenção. Em artigo no jornal O Dia, o Frei Betto agradecia a dona Lindu, mãe de Lula, por ter dado ao Brasil um presidente com capacidade de liderança, transparência ética e profundo amor ao povo, sobretudo àqueles que, como a sua família, conhecem na carne e no espírito o sofrimento e a pobreza. O Brasil merece um futuro melhor. O Brasil merece este fruto de seu ventre: Luiz Inácio Lula da Silva, rasgava Frei Betto. Lula era o Messias e dona Lindu, Maria. Começava aí o processo de santificação do recém-eleito presidente, como notou Villa, com a ressalva de que não demorou muito para a fantasia ser desfeita.
A falta de capacidade administrativa, a inexperiência e o deslumbramento produziram os primeiros escorregões. O ministro Roberto Amaral resolveu defender publicamente a construção de uma bomba atômica. Lula incentivava devassa nos ministérios. Em meio a esse clima de Brasil Novo, Lula se encontrava no Palácio do Planalto com Marcos Valério, o organizador financeiro do mensalão. A avaliação positiva do presidente nas pesquisas cairia nos primeiros dois meses de governo. Encantados pelo poder, os petistas começavam a saborear os privilégios que combateram durante décadas. Lula usou um veículo oficial para passear com a cadela Michelle. O PT, indiscutivelmente, estava no pudê. Mas pagou um preço caro demais, de que é emblemático o fato de Lula estar preso em Curitiba, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Nonato Guedes