Tido como pai do folclore político na imprensa brasileira, Sebastião Nery conta outra versão para o nascimento do Partido dos Trabalhadores, cuja fundação está prestes a completar 39 anos em fevereiro. Num artigo escrito em 1979 e que consta do livro Ninguém Me Contou Eu Vi, Nery sustenta que o PT não nasceu em São Bernardo, mas em Criciúma. Eu vi. Em 1978, o prefeito Walmor de Luca, líder estudantil de esquerda, deputado federal de 74 no levante eleitoral do MDB, realizou um seminário trabalhista nacional com os grupos políticos que se reorganizavam lutando pela anistia e as mais destacadas lideranças sindicais da oposição. Lula estava lá, relata.
Além de Lula, Olívio Dutra, bancário do Rio Grande do Sul, Jacó Bittar, petroleiro de São Paulo, e outros dirigentes sindicais do ABC paulista, Rio, Paraná, Santa Catarina, Minas, Bahia, Pernambuco. Desde a primeira assembleia, um assunto centralizou os debates: o movimento sindical deve ter partido político? As lideranças sindicais devem entrar para partidos políticos? Lula era totalmente contra. O argumento dele era que os sindicatos eram mais fortes do que os partidos políticos e a política descaracterizava o movimento sindical e desmobilizava os trabalhadores.
– Durante dois dias prossegue Sebastião Nery discutimos muito. Estávamos lá um grupo de socialistas e trabalhistas (José Talarico, Rosa Cardoso, João Vicente Goulart, eu, outros). Defendíamos a reorganização dos trabalhistas e socialistas em um só partido, liderado por Leonel Brizola, que havia saído do Uruguai e ido para os Estados Unidos. Lula não queria partido nenhum. Mas houve tal pressão de líderes sindicais de outros Estados que Lula balançou. O argumento dele era que os sindicatos poderosos, como os de São Paulo, não precisavam de partidos. Mas os mais fracos, que eram mais de 90% no país, necessitavam de cobertura política. No último dia, no jantar, vi Lula já quase mudando de posição. Em 1980, nasceu o PT. Walmor de Luca devia ter ganhado carteirinha de padrinho.
A versão de Nery coincide com a de outro jornalista abalizado, o paraibano José Nêumanne Pinto, autor de um livro intitulado O que eu sei de Lula e que relata o receio do ex-metalúrgico quanto a infiltrações no Partido dos Trabalhadores que descaracterizassem, de largada, as feições que o PT deveria ter. Essa obsessão pelo purismo dentro do PT chegou a extremos, como o passionalismo do PT paraibano, nos seus primórdios, vetando ingresso ou aliança com políticos como Antônio Mariz e Marcondes Gadelha. Deste, dizia-se que era oriundo da burguesia e que nunca vestira um macacão de operário na vida. Mariz era repelido por ter militado na Arena, partido que sustentou o regime militar, embora o líder paraibano fosse dissidente na agremiação e tenha integrado um denominado grupo renovador, que se articulava com segmentos da sociedade civil. Esse paroxismo do PT, de resto, foi inútil, pois o partido, quando se achava quimicamente puro, foi abalado pelo mensalão, que feriu de morte o código de ética a bíblia sacrossanta dos petistas, atirada no lixo da História.
O PT prepara-se para completar 39 anos de fundação com seus principais quadros na cadeia e desgastado política e eleitoralmente em bolsões onde, antes, reinava soberano. Na década de 90, o partido construiu o que ficaria conhecido como jeito petista de governar, apoiado na participação popular. O modelo de gestão participativa, que seria depois premiado ao menos 54 vezes, foi testado pela paraibana Luíza Erundina em São Paulo, a maior cidade do País, e em inúmeras outras cidades, de vários portes e configurações sociais e políticas. Infelizmente, Erundina foi terrivelmente boicotada por petistas ortodoxos na administração paulista. Em 94, o PT tinha o controle de 53 prefeituras, entre elas as capitais Goiânia, Rio Branco, Belo Horizonte e Porto Alegre nesta última permaneceu três gestões seguidas. Na prática, o modelo implicava na ética na política, descentralização administrativa e democracia participativa através dos conselhos setoriais. Mas internamente houve disputas acirradas, em parte provocadas pela experiência do poder e da luta contra o avanço do neoliberalismo.
Apesar da mobilização em torno do impeachment de Collor, a década de 90 foi a década do esvaziamento das ruas. Em livro publicado a respeito, Lincoln Secco afirma: Os anos vindouros assinalariam a efetiva estatização do PT, antes de sua nacionalização. Ou seja, seu recrutamento se daria cada vez mais entre pessoas profissionalizadas na política e ele se conformaria como oposição parlamentar. Mas nada se compara a dois episódios cruciais o do mensalão e o da prisão de cabeças coroadas como o próprio Lula. É um milagre que com tantos golpes o PT ainda esteja vivo.
Nonato Guedes