Nem o general Ernesto Geisel, penúltimo presidente da República no ciclo do rodízio de militares investidos no poder com o golpe de 64, foi tão subserviente aos Estados Unidos quanto está sendo, agora, o presidente Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, que não esconde a idolatria por Donald Trump, o trapalhão ocupante da Casa Branca em Washington. Na prática, Bolsonaro ressuscitou o folclore alimentado em torno de Juraci Magalhães, que depois do golpe de 64 foi nomeado embaixador brasileiro nos Estados Unidos. Antes de embarcar, ele foi homenageado com um almoço oferecido pela Câmara Americana de Comércio em São Paulo. Ali, um repórter perguntou-lhe com que espírito iria assumir a missão em Washington. Juraci pronunciou, então, a sua célebre frase:
O Brasil fez duas guerras como aliado dos Estados Unidos e nunca se arrependeu. Por isso eu digo que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.
Encurtadas para o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, as palavras do embaixador entraram para o folclore político, como anota Jaime Klintowitz no seu livro A História do Brasil em 50 Frases. General e veterano da revolução de 1930, primeiro presidente da Petrobras e golpista em 1964, Juraci Magalhães foi então e por toda a vida atormentado sem dó como entreguista e lacaio do imperialismo. Em 2002, na sua primeira visita a Washington como presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva a lembrou de forma marota. Perguntado sobre as relações com a China, saiu-se assim: Eu não conhecia a China muito bem, até que o governo americano fez da China seu parceiro preferencial. E eu pensei comigo mesmo, se é bom para os americanos, deve ser bom para os brasileiros. Foi muito aplaudido.
Na verdade narra Klintowitz o direito autoral da frase não pertencia a Juraci Magalhães, mas ao americano Charles Erwin Wilson, presidente da General Motors, que fora nomeado secretário de Defesa pelo presidente Eisenhower em junho de 1953. Na audiência de confirmação no Senado um parlamentar perguntou a ele se, como secretário de Defesa, tomaria uma decisão que prejudicasse a General Motors. Wilson respondeu afirmativamente. Mas, acrescentou, não podia imaginar tal situação, because for years I thought what was good for country was good for General Motors, and vice versa. A frase original é mais citada em formulação virada ao avesso: O que é bom para a GM é bom para os Estados Unidos. Serve, desse jeito, para demonstrar o egoísmo da grande indústria. Klintowitz diz que muito da notoriedade desfrutada pelas palavras de Juraci Magalhães se deve ao contexto dos primeiros momentos do regime militar. Logo após o golpe de 1964, a diplomacia brasileira alinhara-se com a estratégia global dos Estados Unidos na Guerra Fria. O Brasil chegou a fornecer tropas para a intervenção militar na República Dominicana em 1965. E parou por aí. Aos poucos, o regime dos generais retornou aos trilhos da chamada política externa independente. Em linhas gerais, essa política fora esboçada no fugaz governo de Jânio Quadros, que condecorou Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul e reatou relações diplomáticas com a União Soviética.
– O sensacional descreve Jaime Klintowitz é que a grande trombada diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos nada teve a ver com Cuba ou a União Soviética e, sim, com a democracia relativa de Ernesto Geisel. Ao se instalar na Casa Branca em 1977, Jimmy Carter anunciou que os Estados Unidos não dariam mais apoio a qualquer ditador anticomunista e que os direitos humanos deixavam de ser tratados como assunto interno de cada país. O presidente americano passou a exigir do Brasil mercadoria que o regime militar não queria entregar: o respeito aos direitos humanos. Para complicar ainda mais, o governo americano se opunha ao programa nuclear brasileiro, em acordo com a Alemanha Ocidental. Coube a Geisel, o quarto general presidente, a tarefa de colocar o assunto em pratos limpos: o que era bom para os Estados Unidos, definitivamente, não agradava ao Brasil. O Brasil é feito por nós, avisava o slogan ufanista criado pelos marqueteiros a serviço do Palácio do Planalto. Geisel fez mais rompeu um velho acordo militar existente com os Estados Unidos. Em março de 78, Carter veio ao Brasil na tentativa de fazer as pazes, mas foi recebido com frieza e desaforos miúdos. O chanceler Antônio Azeredo da Silveira chegou a dizer a jornalistas que a visita era de iniciativa do americano e não por convite do governo brasileiro. Sucederam-se incidentes, devido a encontros da comitiva de Carter com opositores do regime militar como dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo. Klintowitz conclui que tudo evaporou rapidamente e que o sucessor de Carter, Ronald Reagan, estabeleceu a diferença entre regimes autoritários dos totalitários para balizar o apoio americano, incluindo-se o regime brasileiro no time dos toleráveis autoritários. Era o governo Figueiredo. Juraci Magalhães morreu em 2001, aos 95 anos, sem ver refeito alinhamento diplomático similar ao existente em seu período. Hoje, Bolsonaro tenta reaver a coesão. Mas o seu governo é tão desastrado quanto o de Ronald Reagan. Em todo caso, o Brasil volta a fazer papelão no cenário internacional.
Nonato Guedes