Quem lhes fala neste momento é um bispo que aplaudiu calorosamente a Revolução de 64, confessou num evento no Recife em 1983 o então arcebispo metropolitano da Paraíba, dom José Maria Pires, acrescentando que em pouco tempo se tornou crítico diante do novo regime face aos excessos cometidos contra as liberdades públicas. Dom José, que morreu em agosto de 2017 em Belo Horizonte, quando tinha 98 anos, vítima de um infarto, era natural da cidadezinha de Córregos, em Minas. Como arcebispo na Paraíba atuou de 1966 a 1995, destacando-se pela veemência com que pregava o Evangelho e a defesa dos direitos humanos, como notou o Mestre em História pela UFPB Vanderlan Paulo de Oliveira Pereira em sua tese de Mestrado.
Dom José soube com antecedência, de um funcionário do governo de Minas Gerais, que haveria uma rebelião com origens naquele Estado, contra o governo federal, dando início a um movimento de salvação nacional para combater a corrupção e toda a sorte de desmandos na área oficial e impedir que o comunismo tomasse conta do Brasil. Ele mesmo telegrafou ao governador de Minas, Magalhães Pinto, um dos articuladores civis da revolução que completa 55 anos no próximo dia 31. Para dom José, parecia perfeita a sintonia entre a Igreja, os militares e o povo. Deu-se a decepção, porém, com o rigor da repressão contra as instituições e as pessoas que pregavam reformas de base. Percebeu-se, então, que sob o disfarce do combate ao comunismo o que a revolução queria mesmo era manter o status quo, dando segurança à classe dominante, temerosa de ver caírem por terra seus velhos privilégios, explicou dom José.
Ele lembrou que já nos primórdios da revolução a juventude e as organizações representativas de classes, como os sindicatos, tornaram-se alvo de severa perseguição por parte dos militares. Seguiram-se intervenções, prisões, cassações e outras pressões contra diversas entidades e contra os jovens mais conscientes e mais contestadores. Os expoentes da linha dura do golpe, como dom José passou a denominar a revolução, estenderam sua mão repressora sobre muitos pobres e inúmeros leigos, agentes de pastoral. Os excessos, conforme ele, esfriaram as relações institucionais da Igreja com o poder. No próprio Nordeste, prelados como dom Helder Camara, arcebispo de Olinda e Recife e dom Fragoso, de Crateús, Ceará, emitiram declarações e atitudes que geraram arranhões. Com o tempo, as divergências foram se aprofundando. Em paralelo, dom José enfronhou-se no contato direto com a realidade de pobreza do povo nordestino e aí encontrou mais uma motivação para dissentir do regime instaurado em 64.
– Na sua prática pastoral, a Igreja foi-se dessolidarizando do Poder e se colocando ao lado das vítimas do sistema; abriu suas portas para acolher os perseguidos. A Igreja voltou a ser, realmente, a Igreja dos Pobres. Antes, essa denominação era entendida de maneira diferente. Era Igreja dos Pobres porque pedia dinheiro aos ricos e favores ao governo para distribuir com os necessitados ou para construir para eles obras assistenciais, como orfanatos, creches, escolas e outras semelhantes. Os ricos e poderosos continuavam sendo os benfeitores. Seus nomes eram declamados nos sermões e sua memória era abençoada com muitos sufrágios explicitou dom José, pontuando que na nova conjuntura, em que se tomou de consciência política, a Igreja passou a oferecer condições para que os pobres e injustiçados se organizassem e passassem a lutar por suas reivindicações.
Dom José não chegou a ser preso nem torturado, como era praxe nos subterrâneos da ditadura. Mas enfrentou o regime e confrontou seus expoentes em atos pela posse da terra e nas lutas por liberdades públicas. Auxiliares de dom José no serviço pastoral foram presos, como duas freiras holandesas que atuavam ao lado de trabalhadores perseguidos por capangas de usineiros e outros proprietários rurais. O bispo dom Marcelo Carvalheira, além de purgar as perseguições dos agentes militares, enfrentou integrantes de um Esquadrão da Morte que surgira na diocese de Guarabira, na região do Brejo paraibano. Dom José tornou-se uma voz constante na denúncia e no protesto contra violações de direitos humanos. Censurado em alocuções através de emissoras de rádio, ele desatendeu pleitos de militares e fundou na Paraíba o primeiro Centro Nacional dos Direitos da Pessoa Humana, confiado a pessoas como o advogado Wanderley Caixe. Para o prelado mineiro, impunha-se uma resistência, fosse como fosse, em virtude das arbitrariedades contumazes que foram praticadas. Para ele, ao se desviar do rumo original, a alegada revolução perdeu credibilidade entre os seus apoiadores e, com isto, foi sendo fortalecido o movimento popular, que culminou com a reconquista da democracia nos últimos anos da década de 80.
Nonato Guedes