No livro Ditadura à brasileira A democracia golpeada à esquerda e à direita, o historiador Marco Antonio Villa narra com riqueza de detalhes os acontecimentos que pontuaram o ano de 1964, quando o governo de João Goulart (Jango) foi deposto e os militares assumiram o poder com o apoio de segmentos da sociedade civil que temiam o comunismo. Villa diz que o ano começou marcado pelo impasse político. Jango só falava nas reformas de base sem nunca defini-las claramente. No ar, o cheiro de golpe era dominante. Fazia parte da tradição brasileira em momentos de crise, como se a carta do golpe fosse a última a ser lançada na mesa.
Havia muito segue Villa a direita vinha articulando a derrubada de Jango. Buscava apoio nas Forças Armadas, principalmente no Exército. Os grupos civis tinham vários golpes encaminhados, um com Magalhães Pinto, em Minas Gerais, outro com Ademar de Barros em São Paulo, ambos governadores. Os militares também se preparavam para derrubar o governo e suas principais lideranças conspiravam. Jango foi montando o quebra-cabeça militar tendo o cuidado de nomear generais de confiança para os principais comandos. Por meio da Casa Militar, organizou um dispositivo que seria acionado em caso de golpe contra ele pelo general Assis Brasil. A pressão sobre o Congresso para aprovar o pedido do estado de sítio tinha sido frustrada. Jango havia aprendido com o erro. Daí a prospecção mais cuidadosa dos passos políticos, para não ser derrotado pela segunda vez.
A esquerda estava fracionada em diversos grupos, e todos com seu projeto de golpe. As Ligas Camponesas, que haviam surgido em 1955 em Pernambuco, tinham na sua liderança o advogado Francisco Julião. Participaram, principalmente no Nordeste, de vários enfrentamentos contra os latifundiários. Julião proclamava aos quatro ventos que a reforma agrária seria feita na lei ou na marra. Por meio do seu braço armado, o Movimento Revolucionário Tiradentes, as Ligas Camponesas apostavam na luta armada desde 1962, quando foram descobertos no Brasil oito campos de treinamento militar, organizados com recursos provindos de Cuba. Os brizolistas apostavam no Grupo dos Onze, com influência sobre sargentos, cabos, soldados e marinheiros. A radicalização tomou conta do país.
De acordo com Marco Antonio Villa, a democracia era vista por esses atores como um empecilho aos seus planos. Queriam chegar ao poder pelas armas. As correntes políticas que desejavam manter o regime democrático eram consideradas reformistas, ingênuas, ora aliadas de Moscou, ora aliadas de Washington. Jango aproveitou os dois primeiros meses do ano para discursar em várias cerimônias militares. Buscou associar as reformas de base ao discurso militar sobre o Brasil. A administração pública estava paralisada. O Congresso reabriria a 15 de março, um domingo. Jango marcou um comício para dois dias antes, uma sexta-feira, 13. A ideia era buscar apoio popular para finalmente enviar os projetos das reformas de base. O governo organizou com esmero o comício do dia 13, conhecido como Comício da Central por ter sido realizado vizinho às instalações da estação ferroviária da Central do Brasil. As faixas exibidas pelos presentes davam o tom do comício: Cadeia para os gorilas, Os trabalhadores querem armas para defender o governo, Jango, assine as reformas que nós faremos o resto. Jango falou por 65 minutos. Assinou três decretos, um sobre a encampação das refinarias de petróleo particulares, outro sobre os aluguéis e outro sobre a reforma agrária.
No dia 30, Jango dirigiu-se à noite a uma cerimônia comemorativa do aniversário da Associação dos Sargentos no Automóvel Clube. Já tinham chegado ao Rio notícias de movimentações militares em Minas Gerais. João Goulart não deu importância. Foi um discurso bombástico. Quando o discurso acabou, o presidente do PSD disse para um amigo, que também assistira ao comício: Jango não é mais presidente da República. No dia seguinte, já não eram boatos, era fato. As tropas vindas de Minas Gerais se aproximavam do Rio de Janeiro, lideradas pelo general Olympio Mourão Filho. O dispositivo militar de Jango não existia. Restou ao presidente arrumar as malas e ir para Brasília, de lá para Porto Alegre. Não era mais o presidente da República. Numa sessão conturbada, o presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, declarou vaga a presidência. Assumiu, interinamente, Ranieri Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados. Depois, foi a tomada plena pelos militares.
Nonato Guedes