Diz o escritor Marco Antonio Villa que os historiadores costumam ter receio de polêmicas. E, no entanto, é com elas que se transforma a visão de mundo de uma sociedade. A menção vem a propósito da controvérsia da hora sobre se houve ou não ditadura militar com apoio civil a partir de 31 de março de 1964, com a deposição do governo do presidente João Goulart. Como está na moda produzir narrativas cujo leit-motiv é o revisionismo até extremado de análises ou avaliações, adaptado aos interesses e conveniências de quem quer que seja, houve quem pegasse embalo na teoria do presidente Jair Bolsonaro, capitão reformado do Exército, de que não houve golpe nem quartelada há cinquenta e cinco anos, mas, sim, uma reação democrática da sociedade contra o comunismo.
Bolsonaro, já deu para notar, nem tem vocação para presidente muito menos para conciliador. É o incendiário que ao invés de apaziguar ânimos toca fogo nas próprias instituições, jogando umas contra outras, a pretexto de pescar em águas turvas. Também é um governante que não gosta de ler nem tem formação intelectual sólida para julgar acontecimentos com isenção. Apega-se a filigranas da História, a pedaços de episódios que possivelmente viu ou viveu, de forma indireta, para adensar um conceito sobre ocorrência que representou corte epistemológico na historiografia brasileira. Ninguém pode passar impunemente por 1964 muito menos fingir que não houve uma longa noite das trevas, repleta de torturas, de prisões ilegais, de cassações de mandatos, de ilegalidades enfim, de uma pletora de atos atrabiliários que via de regra são a matéria-prima das ditaduras, de direita ou de esquerda.
Os ânimos ainda estão tão acirrados no Brasil, politicamente, em decorrência da própria eleição presidencial que alçou Bolsonaro, um outsider, ao Palácio do Planalto, que em nome da democracia intentou-se, da parte dos adversários do atual governo, proibir o presidente e seus discípulos amestrados de celebrarem a gloriosa, como era chamado em tom jocoso o movimento golpista que depôs João Goulart. Que celebrem, nos quartéis, de forma envergonhada, já que, publicamente, é indefensável a longa noite das trevas. Mas que não se reprima qualquer manifestação bradando aos quatro ventos que ditadura, nunca mais e que democracia, sempre. Porque o postulado democrático é o postulado que a sociedade reivindica para poder encaminhar soluções para um sem número de demandas não equacionadas durante meio século de história.
O doutor Ulysses Guimarães, que militou na resistência ao arbítrio nos quadros da oposição consentida durante a ditadura militar, ou seja, à testa do MDB, costumava fazer uma analogia perfeita entre o Estado autoritário que vigorou e a sociedade democrática que procurou sobreviver aos esbirros da repressão militar, objetando que a sociedade era Rubens Paiva, que foi dado como desaparecido. Ou Vladimir Herzog, jornalista da TV Cultura de São Paulo, suicidado nos porões do Doi-Codi do II Exército, num dos mais vergonhosos casos de violência cometida pela força bruta, pelos segmentos que um presidente da República Ernesto Geisel chamava, generosamente, de bolsões sinceros mas radicais de revolucionários. Era uma referência à turma do pau-de-arara, que deixou um rosário de vítimas pelos cantos e nada sofreu porque, neste país, a anistia que foi forjada beneficiava, a um só tempo, torturados e torturadores. Coisas do Brasil.
Não dá para ignorar que especialistas em brutalidade e tortura requintada ou sofisticada, como o agente da CIA norte-americana Dan Mitrione, foram enviados para o Brasil a pretexto de levar suas técnicas à frente e ensinar a milicada tupiniquim sobre o ofício de espezinhar a dignidade humana. Todas essas malsinadas ações faziam parte de uma estratégia da política imperialista para dizimar focos de contestação aos interesses de grupos econômicos privilegiados. O preço a pagar seria a paz dos cemitérios e foi assim que centenas e milhares de pessoas no Brasil ainda hoje exibem cicatrizes, ora de violência física, ora de tortura psicológica, ora de ameaça à própria sobrevivência. Cérebros privilegiados que teriam feito o Brasil avançar anos-luz em pouco tempo no Conhecimento e no progresso foram escorraçados, forçados a buscar exílio em outras plagas porque, aqui, não eram bem vistos. Há um legado enorme, envolvendo banho de sangue, privações, violações de toda ordem, introduzido esse legado a partir da eclosão do golpe ou da ditadura militar. Que os remanescentes militares dizem que não foi ditadura nem golpe nem quartelada. Pouco importa o que pensam esses botocudos. A consciência livre do povo brasileiro permite ver, com clareza, hoje, quem foi algoz naquela quadra lutuosa. Bolsonaros passam, não custa lembrar!
Nonato Guedes