José Sarney foi taxativo: É proibido gastar. Fez, então, uma curta pausa oratória e reiterou, com ênfase: Esta é uma ordem do presidente Tancredo Neves. O vice-presidente em exercício foi cuidadosamente fiel ao texto que lhe cabia ler na primeira reunião ministerial da Nova República em março de 1985. Em sete ocasiões ele sublinhou que aquelas eram as palavras de Tancredo ao ministério e ao povo brasileiro. O discurso fora escrito com antecedência. O presidente eleito o ditara ao sobrinho Francisco Dornelles, sendo posteriormente submetido a uma pequena revisão do jornalista Mauro Santayanna. Então, às vésperas de receber a faixa de presidente da República, Tancredo foi hospitalizado e operado às pressas na madrugada do dia da posse, 15 de março. O cargo foi entregue ao vice-presidente eleito, José Sarney, na condição de interino. A frustração era geral. (Nota da Redação: no próximo domingo, dia 21, a morte de Tancredo Neves completará 34 anos).
O cargo, os ministros, o discurso e o entusiasmo popular eram de Tancredo. Sarney era um estranho no ninho, uma peça adicionada por necessidade à minuciosa articulação montada por Tancredo para a transição para a democracia. O presidente eleito amargara 21 anos na oposição ao regime de exceção. O vice mudara de ninho poucos meses antes, depois de comandar o PDS, o partido de sustentação da ditadura. Na convenção do PMDB que sacramentara a chapa que concorreria nas eleições indiretas, Sarney até evitou discursar, temendo ser vaiado. Não se sabe com certeza o momento em que a saúde de Tancredo começou a declinar. No dia da eleição, 15 de janeiro, ele parecia vigoroso e cheio de vida, uma performance pessoal invejável num homem de 75 anos. O Colégio Eleitoral era o mecanismo criado pelo regime militar para entregar a 686 cidadãos privilegiados o direito de voto de 60 milhões de eleitores. No ocaso da ditadura, o feitiço havia virado contra o feiticeiro. O candidato da oposição recebeu 480 votos contra 180 dados a Paulo Maluf. Este representava a situação, mas sua candidatura contrariava a vontade do Palácio do Planalto. Venho em nome da conciliação, anunciou o presidente eleito.
Uma figura política rara, o mineiro Tancredo de Almeida Neves era, de fato, um conciliador nato. A tolerância era a marca do seu caráter. Nascido em São João Del Rei em 1910, quinto numa família de 12 filhos, era filiado ao PSD quando foi eleito deputado federal pela primeira vez em 1951. Depois, foi ministro da Justiça no segundo governo de Getúlio Vargas, presidente do BNDE no governo de Jânio Quadros, articulador do acordo que permitiu a posse de João Goulart e a implantação do sistema parlamentarista em 1961, no qual atuou como primeiro-ministro. Em 30 de março de 1964, ele tentou em vão convencer Goulart a não comparecer a um ato público promovido pelos sargentos no Automóvel Clube, no Rio. Argumentou que a presença do presidente seria vista pelos militares como uma provocação. Não deu outra: no dia seguinte, Goulart foi derrubado por um golpe militar. Tancredo também foi senador. Em 1984, renunciou ao governo de Minas Gerais para ser o candidato da oposição e o presidente da transição para a democracia.
Quem poderia pensar que o veterano guerreiro morreria três meses depois de eleito presidente da República? Depois da vitória no Colégio Eleitoral, Tancredo viajou para o exterior e se encontrou com chefes de Estado, numa estratégia que visava demonstrar ao mundo que o processo de redemocratização no Brasil era irreversível. Começou a sentir as dores e o desconforto da doença no dia 08 de março mas preferiu escondê-los de todos. No dia 13, foi examinado pelo chefe do serviço médico da Câmara, Renault Matos Ribeiro, que recomendou cirurgia imediata. Tancredo preferiu deixar a operação para depois da posse. Em 14 de março, véspera da posse, ele se sentiu mal durante a missa em ação de graças em sua homenagem no santuário Dom Bosco em Brasília. Era celebrada por seu primo, dom Lucas Moreira Neves, bispo da Cúria Romana, e por quatro arcebispos. Foi sua última aparição pública. Antes de ir para o hospital, Tancredo tomou o cuidado de assinar uma por uma a nomeação dos ministros e mandou que fossem publicadas imediatamente. Não queria correr o risco de deixar a tarefa para Sarney. Tancredo foi internado à noite no hospital de Base de Brasília. O primeiro diagnóstico divulgado foi o de apendicite. A cirurgia ocorreu no início da madrugada seguinte. Na manhã da posse, os médicos divulgaram um novo diagnóstico: o presidente eleito sofria de diverticulite de Meckel, doença cujo sintomas são condizentes com as fortes dores abdominais que sentia. Era falso, inventado para iludir e tranquilizar o Brasil.
O economista Ronaldo Costa Couto, que fora nomeado ministro do Interior de Tancredo, escreveu que o casso era de abdômen agudo cirúrgico. Depois se veria que era inflamação de tumor benigno, um leiomioma, problema que poderia ser resolvido com uma cirurgia simples. Conspirou contra a saúde do presidente uma série de barbeiragens. À desastrada operação na madrugada seguiram-se 38 dias de agonia, 27 dos quais com o presidente internado no Instituto do Coração em São Paulo. Foi operado sete vezes e dado como recuperado pelos médicos em três ocasiões. O neto Aécio Neves conta que nos dias finais, debilitado e sofrendo com as dores causadas por tubos, suturas e cateteres, Tancredo expressou um derradeiro lamento: Eu não merecia isso. Morreu em 21 de abril de 1985 simbolismo de coincidência de data com a do enforcamento de Tiradentes. Tancredo morreu exatamente de infecção generalizada. O Brasil o homenageou com um dos maiores funerais da história, só similar ao de Getúlio Vargas em 1954.
Jaime Klintowitz, escritor, autor de A História do Brasil em 50 Frases, entre outros livros