Não dá para acreditar que tenha havido equívoco de interpretação na postura de ministros do Supremo Tribunal Federal favoráveis a medidas de restrição da liberdade de imprensa no que diz respeito a matérias de teor jornalístico veiculadas na internet. Ainda bem que não há unanimidade nessa linha totalitária dentro da Corte, o que livra o país do perigo de jurisprudência nefasta atentando contra o princípio da livre expressão. Entretanto, a simples manifestação de instintos primitivos focados no cerceamento do direito à informação é preocupante para a sociedade como um todo, que vinha recuperando a confiança no Judiciário e atribuindo-lhe a prerrogativa de guardião da Constituição. A censura não fere a Constituição. Ela rasga a Constituição, que se torna vulnerável a ataques corporativistas em detrimento do interesse público que passa pela transparência e pelo contraditório.
O Supremo talvez tenha sido contaminado pelo cipoal de polêmicas levantadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro tendo como corolário a questão ideológica. Apesar de não aparentar possuir bagagem intelectual para polemizar sobre o viés ideológico no Brasil o presidente Bolsonaro tem atuado como agente provocador, destilando conceitos e operando medidas que não se coadunam com a democracia. Sabia-se que um eventual governo Bolsonaro estava fadado a rompantes de retrocesso político-institucional por causa do tom empregado durante a campanha sinalizando nessa direção. Os bolsonaristas jactaram-se, por sua vez, de estar em curso no Brasil um expurgo ideológico profilático, ignorando que não cabe ao Estado tutelar o regime institucional em vigor, mas, sim, atuar como árbitro, como Poder Moderador quando confrontado com as variadas pressões de segmentos de direita, de esquerda ou de centro. Esse tipo de comportamento não se identifica com o pensamento da maioria da população e encontra forte barricada entre bolsonaristas menos fanáticos ou radicais.
A defesa da liberdade de imprensa deve ser assumida de forma intransigente pelo conjunto da sociedade porque o princípio afeta os variados segmentos políticos ou ideológicos que travam embates na arena montada nos últimos três meses no país. Em momentos assim, de tentativa de encaminhamento para o rumo da escuridão, cabe evocar figuras representativas que se insurgiram contra atentados originários de governos ou regimes anteriores ao longo da história do país. Uma dessas figuras épicas foi, certamente, o jurista Sobral Pinto, que tinha suas próprias convicções, conservadoras, mas não hesitou em defender comunistas como Luís Carlos Prestes e Harry Berger. O doutor Sobral defendia ideias, valores que são imutáveis quando passam a ser inerentes à sobrevivência do organismo social.
Nesse sentido, tornou-se antológica e entrou para os anais da sátira política nacional a resposta proferida pelo doutor Sobral Pinto quando questionado sobre a democracia à brasileira, em períodos ditatoriais como o que remonta ao Estado Novo de Getúlio Vargas e o que remonta à ditadura militar instaurada em 1964 e que perdurou por 21 anos: Eu não conheço democracia à brasileira. O que conheço é o peru à brasileira, um prato bastante popularizado, reagiu o doutor Sobral, do alto da sua dignidade contra esbirros de regimes autoritários. Nessa colocação do eminente jurista estava implícita a definição doutrinária sobre a universalidade do conceito de democracia. E foi essa definição exemplar que serviu como parâmetro para os líderes de movimentos de resistência contra o totalitarismo, fosse de direita ou de esquerda.
O protesto de Sobral Pinto dirigia-se à manipulação intentada com o fito de adjetivar regime político como o democrático, que não se presta, de fato, a adjetivações de nenhuma espécie, porque isto significaria corroborar o caráter de força e poder a que se atribuem inúmeros dirigentes ou governantes de variados países em quadras distintas da História. Acreditava-se piamente que após décadas de enfrentamento vivenciado pela sociedade civil para defender a democracia estivesse ultrapassada qualquer manifestação em sentido contrário e que expressasse a vontade de impor decisões intrínsecas ou associadas aos direitos de cidadania. Nota-se, agora, com essas atitudes intempestivas, emanadas até de autoridades com assento no Poder Judiciário, que não está sob controle a recidiva do autoritarismo, a tentação pela vigência de regimes de força nos quais a sociedade é subjugada a credos discutíveis de governantes ou dirigentes. Essa recidiva autoritária está entranhada no âmago da sociedade brasileira, junto a grupos que, a rigor, nunca depuseram armas nas suas batalhas que pregam as trevas ao invés dos embates a céu aberto. Já houve quem dissesse que a democracia é uma plantinha tenra que precisa ser regada com cuidado para subsistir. É o que precisamos voltar a fazer, a fim de que o país não se torne tão irrespirável como se encontra na presente conjuntura.
Nonato Guedes