O ex-presidente Tancredo de Almeida Neves, cuja morte completa 34 anos no próximo domingo, dia 21, era fustigado por setores radicais do próprio MDB e PMDB, a que pertenceu por muito tempo, pelo seu estereótipo conciliador. Dizia-se que Tancredo fazia concessões demais, por exemplo, no período militar, na fase em que a ditadura caiu sobre o solo pátrio, em final de março de 1964. Esse tipo de apreciação não faz jus à grandeza da personalidade de Tancredo. Ele era, essencialmente, um político hábil, que contornava os obstáculos para atingir metas que fixara para si mesmo, como a de empunhar a bandeira da redemocratização do Brasil.
Tancredo tinha, por intuição, a noção exata dos momentos de avanço e recuo que deveriam ser dados na conjuntura institucional e política brasileira. Tornava-se figura-chave, especialmente, nos instantes de radicalização, quando, por exemplo, a linha dura do regime militar, ensandecida, partiu para ataques terroristas contra militantes de esquerda ou adversários do governo acantonados dentro do MDB, o partido que foi tolerado quando o poder das armas se erigiu por 21 anos. Há registros, nos anais do Congresso, e de jornais e de livros de História, de discursos veementes proferidos por Tancredo Neves em plena ditadura, vergastando contra a violação de liberdades e direitos constitucionais.
O que havia, da parte de Tancredo, era uma imensa compreensão dos marcos históricos de enfrentamento ou de conciliação. Mas nunca constou em seu dicionário nem no histórico da sua trajetória a palavra rendição. Tancredo não era um covarde nem se intimidava com os arreganhos ou os esbirros dos militares que buscavam amparo nas baionetas para se sustentar no poder. Há inúmeras definições sobre o político mineiro que, infelizmente, por problemas de saúde, não logrou assumir a presidência da República. O jornalista Augusto Nunes, num livro sobre Tancredo, integrante de uma coletânea sobre grandes líderes mundiais, fez essas observações:
Não se tira o sapato antes de se chegar ao rio, dizia Tancredo Neves. Ele sabia que a política costuma ser cruel com os afoitos. Mas ninguém chega ao Rubicão para pescar, avisava o mesmo Tancredo, invocando o rio que os invasores de Roma deveriam cruzar antes de tentar conquistá-la. Ele também sabia que a política costuma ser cruel com os hesitantes. Essas duas frases balizaram as margens do rio através do qual navegaria, durante mais de cinquenta anos, a carreira política do mineiro Tancredo de Almeida Neves. Ele nunca tirou os sapatos antes da hora. Mas tampouco hesitou quando chegado o momento de cruzar o Rubicão.
Na madrugada de 24 de agosto de 1954, por exemplo, o deputado Tancredo Neves, ministro da Justiça do governo constitucional de Getúlio Vargas, teve um enérgico desempenho na dramática e última reunião entre o velho presidente e seus auxiliares diretos. Ao contrário do contrário da maioria dos ministros presentes, Tancredo, então com 44 anos, defendeu enfaticamente a punição dos militares rebelados que exigiam a renúncia de Getúlio. Era hora de atravessar o Rubicão. Quase trinta anos depois, por saber que não convinha antecipar o momento de tirar os sapatos, Tancredo montou pacientemente a estratégia que o levaria à presidência da República. Primeiro, aceitou incorporar-se ao movimento das diretas-já, mesmo convencido de que o comovente entusiasmo popular tropeçaria na resistência de congressistas ligados ao governo militar que efetivamente acabaram impedindo a aprovação da emenda que devolvia ao povo o direito de eleger o presidente da República. Depois, adiou o quanto pôde o lançamento oficial de sua candidatura à presidência e só concordou em formalizá-la depois de feitas as costuras políticas que resultaram na Aliança Democrática. Atirou-se, então, ao Rubicão.
Tancredo sabia fazer a hora, não esperava acontecer. Infelizmente, o destino não foi generoso com ele, e o líder mineiro morreu antes de assumir a presidência da República. Mas o povo brasileiro não o esquece no panteão dos heróis ou líderes de massa.
Nonato Guedes