Não foi com Hino Nacional nem Coração de Estudante, nem Canção da América, nem Peixe Vivo, nem com alguma outra papagaiada nacionalista. No dia 15 de janeiro de 1985, na Cidade do Rock, no Rio de Janeiro, as hostes metaleiras saudaram o resultado das eleições no Colégio Eleitoral cantando ao mais baixo estilo arquibancada: Eu, eu, eu, Maluf se fodeu!. Nenhuma alusão ao vencedor ou a algum aspecto positivo de fé no futuro. Àquela altura do campeonato, ou melhor, do festival, ninguém tinha ideia de que o Brasil estava entrando no mais longo período democrático. É com esse lead que Edmundo Barreiros e Pedro Só dão partida à narrativa de 1985 O Ano em que o Brasil Recomeçou (Ediouro). A eleição de Tancredo Neves, por via indireta, derrotando Maluf e, bem ou mal, contribuindo para a derrocada da ditadura militar, foi um dos emblemas daquele ano, também conhecido como caixinha de surpresas.
Tancredo foi eleito num 15 de janeiro chuvoso e fatídico, já que não tomou posse (morreu de septicemia e infecção hospitalar depois de uma via crúcis eivada de mentiras de boletins médicos e desinformação por parte da sociedade). Há 34 anos, o Brasil, que tomara um porre cívico com a eleição de Tancredo, o arauto da Nova República, foi surpreendido com a posse de José Sarney, o vice, remanescente da ditadura mas que havia rompido com o regime e se aliado às forças democráticas. Aos 75 anos, inicialmente acometido por um divertículo de Meckel, que lhe provocou fortes dores constantemente, Tancredo chegou a viajar pelo exterior, compôs o ministério numa engenharia política poucas vezes vista no Brasil e anunciou ao povo que seu governo iria deflagrar uma era de austeridade e de melhoria das condições de vida de todos. A História, caprichosa, não permitiu que Tancredo conseguisse ir além da presença na missa, dentro da programação de posse. A partir daí, sucedeu-se um verdadeiro calvário, com seguidas intervenções cirúrgicas. O general João Baptista Figueiredo, último presidente do ciclo militar, saiu pelos fundos do Palácio do Planalto para não passar a faixa a Sarney. Antes, pedira ao povo brasileiro que o esquecesse. Pedido aceito. Quanto a Tancredo, cumpriu-se o que ele havia assegurado: aquela era a última eleição indireta da história política brasileira.
A Nova República dividia atenções em janeiro com o mega festival Rock in Rio, uma empreitada tomada a peito pelo empresário Roberto Medina e que acabou sendo um divisor de águas para a música nacional, dando à geração que implantava o rock no Brasil uma lição de know-how, ainda que à custa de um tratamento desigual em relação aos gringos. Pedro Só e Edmundo Barreiros lembram que 1985 não foi bolinho. Tinha bumbum de fora pra chuchu no chamado Carnaval da Democracia. Tinha garotas querendo uma ficada e garotos querendo uma fincada. Tinha gente transando, pegando câncer gay e morrendo, Tinha gente acreditando em Nova República e gente se preocupando tolamente com coisinhas como democracia e liberdade de expressão. Tinha gente dançando new wave com chutinhos no ar, sem saber que aquela festa pobre que os homens armaram para convencer o Cazuza iria acabar em lambada e sertaneja. Tinha Jânio Quadros, cruzes, ressurgindo da ressaca histórica. Tinha Sarney embriagado de poder!
O refrão Eu, eu, Maluf se fodeu, segundo Pedro Só e Edmundo Barreiros, foi uma escolha historicamente acertada afinal, o salvador da pátria jamais assumiria a Presidência, a Nova República logo provaria ser uma sucessão de decepções e até hoje a trajetória do país não cansa de se repetir como epopeia ridícula e absolutamente sem heróis. Os dois jornalistas adiantam: Em 15 de janeiro de 1985, estava tudo certo, parecia que estava tudo certo. Só que nada saiu do jeito previsto. Nem no Rock in Rio, que demorou seis anos para voltar em uma segunda edição, nem na política, que engoliu cinco anos de mandato parra José Sarney. E muito menos na economia, que ilusoriamente vivia um período favorável desde o fim de 1984, apesar da inflação. Pesquisa mostra que classe média volta ao paraíso do consumo, anunciava reportagem de Nelson Blecher na Folha de São Paulo em três de janeiro. Tancredo Neves estava longe de ser o candidato ideal para os jovens que tinham iddo ver Scorpions e AC/DC. E aqueles jovens também estavam longe de ser o eleitorado dos sonhos do mineiro. A minha juventude, por quem eu tenho apreço e admiração, não é a do Rock in Rio, havia anunciado ele, alguns dias antes. Dane-se, não iria precisar dos votos dos caras mesmo…Mas, vaselina do jeito que era, percebeu que tinha mandado mal e disse que suas declarações foram colocadas fora do contexto. Maluf aproveitou para estabelecer logo: A minha juventude do rock. Ninguém acreditou, claro concluem Pedro Só e Edmundo Barreiros.
Nonato Guedes