Não deixa de ser um fenômeno impressionante a persistência, no Congresso Nacional, do denominado Centrão, um agrupamento de legendas conhecido por mercadejar seu apoio aos presidentes da República de plantão em troca de cargos, verbas orçamentárias e outras benesses. O atual presidente Jair Bolsonaro já sentiu na pele os efeitos da ação devastadora do Centrão, que se juntou até ao PCdoB e a outras legendas tidas como nanicas para derrotar o governo em episódios como o da convocação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que se constituiu em desastre por ter anunciado cortes nas universidades federais e ter achincalhado manifestantes que foram para as ruas protestar contra o desmonte da Educação.
A ex-deputada federal paraibana Lúcia Braga, mesmo sendo do PFL, peitou o Centrão por ocasião dos debates e da votação de propostas na Assembleia Nacional Constituinte que acabou produzindo a Constituição Cidadã de 1988, no dizer de Ulysses Guimarães. Lúcia chegou a ser convidada pelo então senador Marcondes Gadelha, que era do PFL, para integrar o Centrão e afirma, no seu livro Tempo de Viver, Tempo de Contar, que recusou a proposta por não ter afinidade com o agrupamento, representante de um movimento direitista, nas suas palavras. Conta Lúcia Braga que Marcondes Gadelha fez-lhe ponderações, dizendo que ela iria ficar sozinha na bancada por causa da sua opção. Eu lhe respondi que ele, sim, iria ficar sozinho, sem o povo, pelo posicionamento reacionário de pertencer ao Centrão, agrupamento que impediu a emenda progressista da reforma agrária e tantas outras possibilidades de avanços em nossa Carta Magna, acrescentou a ex-deputada.
Lúcia teve uma atuação limitada na Constituinte, principalmente no segundo turno, porque teve que se dedicar de corpo e alma à sua filha Patrícia, que foi vítima de acidente automobilístico em Alfenas, Minas Gerais, e que enfrentou uma via crúcis que culminou com sua morte precoce. Mesmo com as limitações e o sofrimento, Lúcia alinhou-se, de forma destemida, com parlamentares que assumiam posições progressistas na Constituinte, que, como muitos se lembram, foi um palco de batalhas memoráveis contra os conservadores, que desejavam manter pontos do status quo herdado da ditadura militar instaurada em 64. Entre parlamentares com quem Lúcia formou na Constituinte figuravam Benedita da Silva (PT), ex-vice-governadora do Estado do Rio, Rita Camata, Lúcia Vânia, Cidinha Campos, Beth Azize, Cristina Tavares e, em algumas votações seus posicionamentos coincidiram com o do deputado Antônio Mariz, Constituinte Nota Dez, que em 1994 derrotaria Lúcia na disputa ao governo da Paraíba.
O Centrão da Constituinte tinha expressões como Roberto Cardoso Alves, de São Paulo, que era tratado pela mídia como o líder da tropa de choque do governo. Os debates eram acalorados em subcomissões e na Comissão de Sistematização, envolvendo temas que iam do tabelamento de juros à licença-gestante. Inúmeras vezes o presidente Ulysses Guimarães teve que apagar incêndios, abafar conflitos, enquadrar parlamentares de diferentes partidos, atuar como algodão entre cristais diante da atmosfera de radicalização predominante e dos interesses corporativistas que estavam em jogo. A Constituinte, afinal, foi uma oportunidade histórica para que grupos organizados da sociedade civil exercessem pressão, fizessem lobby ostensivamente junto aos parlamentares, em prol das suas aspirações, dos seus interesses imediatistas. Semanalmente, enquanto duravam os trabalhos, Brasília era invadida por delegações de manifestantes, empunhando bandeiras de luta e empenhados em périplos pelos gabinetes parlamentares a fim de fazer valer as pautas que lhes interessavam.
Ao final dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, houve um enxugamento de proposições e a promoção de um equilíbrio possível entre as demandas inseridas pelos lobbies organizados que lograram êxito no trabalho de persuasão junto a deputados e senadores. O deputado Ulysses Guimarães avaliou como extremamente produtivo o resultado dos trabalhos da Constituinte, malgrado alguns avanços não terem sido implementados. De tudo isso, fica a lembrança da atuação do Centrão, que agia como uma milícia institucionalizada, que ia com tudo pra cima. Fazia parte do jogo democrático, já que os embates foram travados conforme as regras desse jogo. O que chama a atenção é a longevidade do Centrão, que em 2019 volta, metamorfoseado aparentemente, no governo Bolsonaro, recorrendo a velhas práticas de chantagem e fisiologismo. Nisso, a política brasileira não mudou muito.
Nonato Guedes