Coube ao ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, jogar espasmos de luz no debate político que se trava no Brasil de forma enviesada. Vivemos tempos estranhos no País, sentenciou o ministro, questionando qual o verdadeiro sentido de manifestações convocadas para amanhã em diferentes lugares a pretexto de apoiar o governo do presidente Jair Bolsonaro e emparedar o Congresso, o Supremo e a Imprensa. Bolsonaro tenta se desvencilhar da mentoria da orquestração em marcha mas não o consegue suas impressões digitais estão nítidas demais nesse movimento que está sendo chamado de maduraço, em analogia ao que se dá na imprevisível Venezuela, onde o desgastado Nicolás Maduro logra mobilizar contingentes que o apoiam em contraposição à busca de uma solução realmente democrática para o país.
Há uma pitada apocalíptica no tom das declarações do ministro Marco Aurélio sobre o bolsonaço engendrado pelos adeptos fanáticos do capitão reformado que foi alçado à Presidência da República sem que consiga governar, não por causa de óbices legais e constitucionais, mas porque este governo não tem um plano definido para fazer o Brasil avançar. Ocorre, também, como já aventamos neste espaço, que o presidente da República tomou-se de amores pela repetição da ópera buffa encenada por Jânio Quadros em 1961, quando tentou comover a opinião pública para obter poderes ditatoriais em plena ditadura e maquinou uma carta-renúncia que não era para ser lida nem levada a sério, mas foi lida, levada a sério e custou ao líder populista e demagogo o próprio cargo que conquistara com um manancial de votos. Quadros teve a renúncia aceita, perdeu o cargo e passou o resto da vida tentando explicar quais eram as tais forças terríveis ou ocultas que o impediam, supostamente, de governar. Até que, exaurido diante do inexplicável, saiu-se com uma tirada até digna de atenção: Num país em que ninguém renuncia a nada, eu renunciei à mais alta magistratura da Nação.
Mas, em relação a Bolsonaro, o que se dá? Dá-se que, fingindo ser legalista, ele trama maquiavelicamente nos bastidores, com seu círculo de amadores do poder, para fomentar uma ditadura com roupagem aparentemente democrática uma dessas invenções esdrúxulas que só acontecem no Brasil, de tempos em tempos, quando a inteligência perde espaço para a burrice, num daqueles cochilos que parecem uma eternidade. A pretexto de desmontar nichos de esquerda que são mais do que saudáveis para oxigenar a vida democrática brasileira, Bolsonaro e sua trupe investem numa cruzada ideológica de direita que se nutre da absoluta falta de argumentos e, por isso mesmo, resvala na discussão medíocre sobre o sexo dos anjos. Governo que não sabe conviver com a crítica, com a oposição, não está preparado para governar.
Seria até compreensível que Bolsonaro e seus fanáticos amestrados articulassem uma estratégia doutrinária para obter adesões a um modelo muito vago e sem substância que jamais foi testado no Brasil ou em qualquer republiqueta ditatorial da América do Sul. O coroamento desse modelo seria a anulação da Oposição e, no seu reverso, o culto à personalidade. O capitão voltaria a ser o Mito, o salvador da Pátria, espécie de SassáMutema redidivo destes tempos sombrios, ou estranhos, como qualificou, de forma lapidar, o ministro Marco Aurélio de Melo. O preço a pagar pelo povo brasileiro seria muito salgado e teria como corolário o nascimento de uma ditadura à brasileira, excentricidade que faria corar, se vivo estivesse, o notável jurista Sobral Pinto, que ironizou a versão edulcorada do regime militar instaurado em 64 sobre democracia à brasileira com a réplica de que o que se conhece, mesmo, é o peru à brasileira, ainda hoje servido nas melhores casas de repasto do país. O que se dizer é que a maioria da sociedade não quer pagar o preço salgado que Bolsonaro tenta embutir em propostas rocambolescas e, efetivamente, estranhas ao corpo político-institucional em tempos de normalidade.
Pessoalmente, não acho que devam ser restringidos quaisquer atos de apoio ao presidente Bolsonaro e ao arremedo de governo que ele conduz. Apenas avalio como ridículas essas manifestações, por carecerem do chamado fato determinante fora daí, são absorvidas no regime democrático e se tornarão, até, uma diversão para bolsonaristas ociosos no fim de semana. Realmente, ministro Marco Aurélio, vivemos tempos estranhos. Imagine que Chico Buarque de Holanda, patrimônio artístico e cultural do povo brasileiro, foi agraciado com o Prêmio Camões de Literatura. Houve manifestações internacionais de regozijo, a partir da congratulação do presidente de Portugal. Que fez Bolsonaro? Não fez. Porque, para ele, Chico não faz parte da indivisível Nação Brasileira, que, pelo menos, ele tenta fragmentar na sua obsessão doentia por reinventar um País que já está adulto demais para caminhar com as próprias pernas e dispensar tutelas indesejáveis.
Nonato Guedes