No livro Ninguém me Contou, Eu Vi De Getúlio a Dilma o jornalista Sebastião Nery, o homem que popularizou o folclore político na imprensa brasileira, com histórias saborosas de protagonistas do poder e da cena histórica nacional, no estilo peculiar que ele imprimiu a essas narrativas, inseriu uma crônica intitulada A Verdade de Pôncio Pilatos, publicada em março de 2013, em que ele teoriza, de forma magistral, sobre o compromisso do intelectual com a liberdade. Porque hoje é domingo e numa homenagem aos leitores que também admiram o talento de Sebastião Nery, transcrevo o texto primoroso de sua lavra:
A Verdade de Pôncio Pilatos
Pontius Pilatus ganhou de Tiberius, imperador de Roma, o governo da Judeia e da Simaria, quando exilou Arquelau, filho de Herodes, o Grande, e irmão de Herodes o antipático Antipas, que deu a Salomé o pescoço de João Batista. Filo de Alexandria, Philo Judaeus e Josephus, historiadores judeus contemporâneos dele, disseram que era ríspido e intratável. Mas não queria matar Jesus. Quando aquele homem de olhos mansos, todo ensanguentado, chegou preso ao palácio, trazendo na cabeça a coroa sarcástica Jesus Nazarenus Rex Judeorum, Pilatos lhe perguntou quem ele era.
– Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida
O caminho, Pilatos sabia o que era. A vida, também. Mas a verdade, não. O evangelista João (18,38) conta que Pilatos outra vez lhe perguntou:
– O que é a verdade?
Jesus não respondeu. E foi levado para morrer. Monges medievais diziam que Jesus não respondeu porque a resposta já estava na pergunta. A pergunta, em latim, era:
– Quid est veritas? (O que é a verdade?).
Com as catorze letras da pergunta, se escreve a resposta:
Est vir quiadest (É o homem que está aqui)
A verdade é que nem a própria Verdade disse o que é a verdade. E até o fim dos tempos, jamais alguém saberá. Toda a tragédia, e todo o ridículo do homem, é que passam os séculos sobre os séculos e nunca ele saberá o que é a verdade. A vida, afinal, é a bela e fugaz busca de Pilatos, querendo em vão saber o que é a verdade. E ninguém saberá, porque ela é muitas.
Por isso, lavou as mãos e foi dormir.
Desde o começo dos tempos, o grande conflito das civilizações sempre foi a tentativa de uns imporem aos outros sua verdade. Como ela nunca está com uns nem com outros, porque jamais existiu uma só verdade, a coação ideológica é a desgraça dos povos. Todos os sistemas religiosos, filosóficos, políticos, acabaram se esvaindo pela impossibilidade de se implantarem absolutos. Um dia, o homem sacode a cangalha e pula livre para o campo. O mais humano e generoso movimento político dos dois últimos séculos foi o socialismo. E acabou se degenerando na brutalidade hegemônica do nazismo, do fascismo, do comunismo.
Da mesma forma que a direita sempre tentou e continua tentando impor seu pensamento único, chame-se colonialismo, imperialismo, neoliberalismo, globalização, também a esquerda imaginou e imagina possível encarneirar a humanidade em um curral ideológico único, universal e inexorável. E um dia, infelizmente a tão duro custo, a humanidade acaba descobrindo que tudo não passou de fantasia ou pesadelo. Tudo isso, por tão óbvio, é banal e fácil de dizer. Difícil é enfrentar o dragão radical, solto no poder, na sociedade, no trabalho, na vida. A coragem de dizer não, como Ortega & Gasset: Ser da esquerda, como ser da direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil: ambas são formas de hemiplegia moral. Intelectual é sinônimo de liberdade, de independência. E o primeiro dever de quem fala, escreve, participa da vida coletiva, é a coragem de ser livre. Para dizer o que pensa porque sabe o que diz. Seguir a caravana, entrar na correnteza, deixar-se levar pela onda é cômodo mas medíocre. E inútil.
Perguntem a Pilatos.
Nonato Guedes