Em reportagem intitulada No Coração do Poder, publicada pela revista Veja, o jornalista Augusto Nunes aborda a saga das primeiras-damas, invariavelmente expostas a tempestades republicanas que não provocaram e diz que se trata de um capítulo fascinante da história brasileira. Segundo ele, a atual primeira-dama Michelle Bolsonaro vem provando que não exerce papel decorativo no governo do marido, Jair Bolsonaro e que já no dia da posse dele, quando esbanjou fluência na Língua Brasileira de Sinais (Libra) ao discursar, antes do primeiro pronunciamento do novo chefe de governo, deixou claro que ela figura no diminuto grupo das primeiras-damas que ultrapassaram com sucesso o campo de ação demarcado por uma das poucas frases declamadas em público pela paulista Eloá do Valle Quadros: Política é coisa para os homens, conformou-se a mulher de Jânio Quadros.
Nunes ressalta que nenhuma alteração no projeto da Nova Previdência foi acolhida por Jair Bolsonaro com tanto entusiasmo quanto a supressão do tópico segundo o qual deficientes físicos e intelectuais deixariam de receber o benefício da pensão integral depois da morte dos pais. Pedidos da primeira-dama são irrecusáveis e inadiáveis, decretou o marido de Michelle. A maioria das quinze antecessoras da brasiliense Michelle nunca foi além de certas fronteiras decorativas. Todas permaneceram expostas a tempestades republicanas que não provocaram e algumas descobriram tarde demais que no Brasil o casamento com um futuro presidente raramente chega a um final feliz, acrescenta Augusto Nunes. As trajetórias desenhadas pelas gaúchas Darcy Sarmanho Vargas e Maria Thereza Fontella Goulart informam que a distância entre o sonho e o pesadelo pode ser medida em mais de duas décadas ou menos de dez anos. A mulher de Getúlio Vargas teve tempo para consolidar o modelo oficial: primeira-dama se ocupa de programas sociais. Entre 1930 e 1945 e depois, entre 1951 e 1954, Darcy foi incumbida pelo marido de dividir-se entre a administração dos assuntos domésticos e a gestão de entidades como a Legião Brasileira de Assistência ou a Casa do Pequeno Jornaleiro. Casada com Michel Temer, a penúltima integrante da linhagem trabalhou bem menos que a fundadora: liberada de preocupações com pequenos jornaleiros, a bonita paulista Marcela pôde dedicar-se exclusivamente ao pequeno Michelzinho. As atividades cotidianas fizeram de Darcy Vargas uma testemunha privilegiada e vítima sem culpa de um dos períodos mais tempestuosos da história, que incluíram a deposição do ditador que chefiou o Estado Novo e o suicídio do presidente democraticamente eleito.
A saga descrita por Augusto Nunes se dá a propósito do lançamento do livro A Mulher Vestida de Silêncio (Editora Record), do jornalista Wagner William, que resgata a odisseia da viúva de João Goulart, provando que o percurso entre o céu e o inferno, cronometrado pelo relógio da História, às vezes dura um punhado de segundos. Maria Thereza foi a mais jovem, linda e injustiçada das primeiras-damas do Brasil. Tinha 15 anos quando virou namorada de João Goulart. O rosto anguloso e tristonho de miss no último desfile viralizou na capa de revistas, promoveu-a a rival de Jacqueline Kennedy e fez suspirar dignitários estrangeiros (o ditador iugoslavo Josip Broz Tito derramou-se em palavrórios tão calorosos que o constrangido tradutor foi obrigado a suprimi-los na versão em português. Tanta beleza, acentuada pelos vestidos do costureiro Denner Pamplona de Abreu, favoreceu o bombardeio de rumores sobre casos de adultério que só aconteceram no imaginário da CIA. Maria Thereza nem chegara aos 30 quando partiu para o exílio com o marido deposto.
Augusto Nunes narra que na madrugada de dois de abril de 1964, militares invadiram a Granja do Torto onde vivia em Brasília, ordenaram-lhe que juntasse o que cabia numa mala e embarcaram Thereza Goulart no avião da FAB que a depositou em Porto Alegre. Não sei o que foi feito dos meus vestidos, dos objetos pessoais e das minhas coisas, lamentou Maria Thereza. Ela cruzou a fronteira sem saber do paradeiro do marido, que a reencontraria dias depois no Uruguai. Só no exílio soube da boataria infame que tentou reduzi-la a uma aventureira vulgar, que iludia um homem incapaz de governar o próprio casamento. Jango ignorou sistematicamente o apelo que Maria Thereza lhe formulou ainda nos tempos de noiva e repetiu até às vésperas da viuvez, consumada em 1976: ela só queria que o marido deixasse de ser mulherengo. A mulher do presidente Eurico Gaspar Dutra, Carmela Telles, chamada de Dona Santinha não descansou enquanto não fossem fechados todos os cassinos no Brasil. O duro golpe na jogatina, decretado em 1946 pelo presidente Dutra, foi o desfecho da conspiração engrossada por autoridades eclesiásticas que o visitavam no Palácio Guanabara, residêbcia oficial do chefe do governo. Houve primeiras-damas pouco expostas, mas o barulho recomeçou em 79 com a chegada aos palácios presidenciais do casal João Baptista e Dulce Figueiredo. Ele foi o único presidente que conseguiu produzir um filho fora do casamento enquanto tentava governar o país. Ela comemorou dançando numa boate com o ator Omar Sharif as compras multimilionárias que fizera à tarde sem pagar um centavo, presenteada que foi por comerciantes generosos em São Paulo.
O livro demonstra que não há receita de primeira-dama. Marly Sarney ficou cinco anos no cargo sem que a alma e a cabeça saíssem do Maranhão. Mulher do carioca Fernando Collor, que via no Brasil uma versão agigantada de Alagoas, Rosane Malta transformou a Casa da Dinda, onde morou, em Brasília, numa extensão da cidade de Canapi, onde nascera, e alternou contrafações de lua de mel com brigas conjugais suficientemente ferozes para assustar o mais temível cangaceiro. A antrópologa Ruth Cardoso, mulher de Fernando Henrique, foi a única da estirpe com profissão definida, luz própria e mente brilhante, singularidades que explicam a rejeição do título que lhe parecia depreciativo: Primeira-dama é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe, ensinou a admirável paulista que enfeixou um conjunto de ações no programa Comunidade Solidária. Conforme Augusto Nunes, a marcha da civilização foi interrompida pela instalação da paulista Marisa Letícia Lula da Silva numa sala do Palácio do Planalto. Nos oito anos seguintes, de costas para programas sociais, sobrou-lhe tempo para entrar sem bater no gabinete presidencial e ordenar ao marido que fosse mais cedo para casa, tornar-se campeã de milhagem no AeroLula, desfigurar o jardim do Alvorada com uma estrela vermelha feita de sálvias, propor a nomeação de Ricardo Lewandowski para o Supremo Tribunal Federal e escolher o sítio e o apartamento que o presidente em fim de mandato ganharia dos empreiteiros agradecidos.
Nonato Guedes