Em 1980, quando da ocasião da morte do ministro José Américo de Almeida, o jornalista Sebastião Nery publicou no extinto jornal Última Hora, do Rio, um artigo intitulado José Américo Ermitão de Tambaú, que era um preito de litúrgica saudade e uma reverência pela figura exponencial que ele representara no cenário nacional. Na íntegra, a crônica de Nery:
No final da praia muito longa e muito branca, José Américo de Almeida, o ermitão de Tambaú, espiava de longe seu país e sua gente com a sabedoria e a espantosa lucidez de seus noventa e dois anos. Estivera doente, estava se recuperando. Magro, pálido, miúdo, os olhos luminosos, falando com a argúcia e a agilidade de sempre, Foi na última semana de janeiro do ano passado. Encontrei-o no quarto, deitado como um passarinho, na rede, sorridente, extremamente carinhoso com o displicente amigo que havia anos cumpria esse ritual cada vez mais espaçado: no Nordeste, visitá-lo. Ver o mestre do romance nordestino, dos discursos secos, despojados, poderosos como seu sertão, e tomar lições do plantonista de incansável presença política.
Estava na rede, dentro do ameno casarão de espichadas varandas generosas, cercado de coqueiros, jaboticabas, flamboyants, acácias e buganvílias. Havia tapete de flores amarelas pelo chão. E um cajueiro temporão com apenas dois cajus, um vermelho e outro amarelo, soberbos e intocados lá em cima. Ele mandou tirá-los e me deu. Era o gesto simples e fundo da amizade.
– Este é o caju da amizade.
Conversamos horas. Ele ia perguntando pelo país, os governantes, Figueiredo, o ministério, São Paulo.
– Como vai São Paulo? São Paulo é uma esperança e um perigo permanente. É preciso nunca perder de vista São Paulo, saber o que ele está pensando. São Paulo é o mais forte pulsar da nação.
Falou da Igreja, da juventude, da classe operária, da Arena, do MDB, de tudo. Os jornais e revistas ali ao lado, lidos. Os livros, aos milhares, lidos. E ele falando devagar, muito tranquilamente, como quem já pensou tudo uma vida inteira. Cada palavra era como um caju maduro: caía na hora exata, fruto da árvore da sabedoria. Eu queria saber o que ele achara do ministério:
– Conheço poucos deles. São uns rapazes muito jovens, gente nova, alguns ainda principiantes. Esse médico da Bahia que vai para o Ministério da Saúde já teve alguma experiência administrativa?
– Não, senhor. É apenas um bom clínico.
– Xii!…
E balança a cabeça, meio aflito:
– O Nordeste continua meio de lado, muito esquecido. A Paraíba, por exemplo, está com muitas dificuldades. É muito difícil governar isso aqui porque não há recursos.
– Pois é, ministro, deram ao Nordeste logo o Ministério das Minas e Energia. E o Nordeste não tem minas nem energia.
Dá uma risada gostosa.
– É isso mesmo, isso mesmo.
Mas não estava de todo desesperançado:
– O Figueiredo prometeu fazer a democracia. Se ele cumprir a promessa, ótimo. As coisas vão caminhando devagar. E iremos tendo tempo para recompor a situação econômica e financeira que não é fácil, com a dívida externa e a balança comercial que temos, as dificuldades da energia e os problemas operários, sociais. Vamos torcer para que ele acerte. Politicamente ele está bem intencionado. Veja a agricultura. O homem do interior precisa de crédito, mas, sobretudo, de auxílio, de assistência técnica, máquinas, semente, adubo. Nossa agricultura, principalmente aqui no Nordeste, é muito primária, muito primitiva, muito abandonada.
(…) Agora, diante do telegrama de sua morte, pego as várias cartas que me escreveu, cada vez que lhe mandei um livro meu. Estive em João Pessoa lançando meu livro. Ele sai do seu sossego e vai ao centro da cidade dar-me um abraço.
Este canto de jornal é, hoje, todo ele, uma litúrgica saudade.
Nonato Guedes