O presidente Jair Bolsonaro mexeu num vespeiro de proporções amazônicas ao questionar circunstâncias da morte do pai do presidente da OAB nacional em plena ditadura militar, que durou 21 anos no país. O capitão reformado do Exército contesta que Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974 após ter sido preso pelo DOI-Codi, braço do aparelho de tortura e eliminação física de opositores da longa noite das trevas que foi a ditadura, tenha sido morto pelos agentes do regime militar, atribuindo o episódio a ex-companheiros de militância do pai do dirigente da OAB, em meio a divergências. Por último, o dono da verdade Jair Messias Bolsonaro deblaterou contra a Comissão Nacional da Verdade, grupo oficializado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011 para investigar violações de direitos humanos na ditadura militar. Dilma foi uma das presas e torturadas, mas Bolsonaro não está nem aí para isso. O que ele quer mesmo é rosetar, apagar a história ou reinventá-la conforme a sua narrativa.
Claro que o capitão tem acesso a informações privilegiadas dos porões do regime de força e também é evidente que houve justiçamentos entre os próprios grupos de esquerda, envoltos na paranoia desencadeada enquanto se traçava a resistência à máquina de matar do regime militar. Mas Bolsonaro conversa muito e nunca apresenta documentos. É sua versão contra a do resto do mundo. Deixemos o capitão imerso nas suas bazófias. O que eu quero pontuar é que não foi preciso o fim da ditadura para que eclodissem as primeiras comissões em busca da verdade sobre o paradeiro de desaparecidos políticos. O professor Luiz Antonio Dias afirmou que desde o final dos anos 70 houve comissões de familiares de mortos e desaparecidos. E no início da década de 80 surgiu o projeto Brasil Nunca Mais a fim de garantir a preservação dos documentos constantes nos projetos judiciais por crimes políticos, divulgando as torturas praticadas contra os presos. Teve papel decisivo nesse projeto o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.
Contudo, como lembrou uma reportagem da revista Leituras na História, foi no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) a partir de 1995,que o tema ganhou importância. Durante seu mandato foram criadas a Lei 9.140, de dezembro de 1995, e a Lei 10.536, de agosto de 2002, reconhecendo como mortas, para efeitos legais, as pessoas detidas por agentes públicos que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação em atividades políticas, no período de dois de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988. Durante o mandato FHC, também foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que durou por mais de dez anos e publicou seus resultados em 2007.
No governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a partir de 2003, houve avanços na questão no intuito de solidificar a democracia no país. Em 2009, foi criado o Centro de Referência das Lutas Políticas (1964-1985) Memórias Reveladas, com o objetivo de publicizar documentos e estimular estudo e pesquisas sobre os governos militares que comandaram o Brasil nos anos de chumbo. A Comissão Nacional da Verdade, com o objetivo de investigar os crimes de tortura, prisão arbitrária e assassinatos ocorridos na ditadura militar e cujo projeto de lei tramitava desde 2010, foi instituída apenas em 2012, já no governo da presidente Dilma Rousseff. Segundo a professora Maria Candelária, tal Comissão foi fundamental para que as comissões estaduais, presentes em Estados como a Paraíba, fossem instaladas envolvendo a participação da sociedade civil e universidades, depositárias de estudos, pesquisas e acolhendo pessoas que vivenciaram aquele momento e têm importante contribuição na reconstituição da verdade daqueles anos.
Dias alertava para o fato de que havia um jogo de interesses por trás das pesquisas, informando que pessoas ligadas ao período, à tortura, à repressão, ainda estavam vivas, algumas, inclusive, ligadas ao governo. Por isso, não acreditava que o relatório final fosse avançar muito e se tornar comprometedor. A revista Leituras da História ponderava, a respeito, que mesmo a passos lentos, a névoa em torno de alguns casos começava a se dissipar. Testemunhas que por décadas guardaram informações importantes sobre os casos mais emblemáticos passaram a surgir aos poucos, quebrando o silêncio. Já dizia o jornalista Luiz Cláudio Cunha: É preciso contar, é preciso dizer. A exortação continua atualíssima e vale, também, para o capitão-presidente Jair Bolsonaro. Desde que ele procure se despir do ranço preconceituoso que forja a sua personalidade agressiva e se disponha a passar a limpo uma das fases negras da História do Brasil. Já foi dito que o país nunca será pacificado enquanto a verdade da longa noite das trevas não vier à tona. Estamos diante de mais uma oportunidade para deslindar o que houve e inquinar responsabilidades.
Nonato Guedes