A cientista e comentarista política Lucia Hippolito produziu uma série de artigos, enfeixados em livro, nos anos 2000, sobre a questão da Previdência no Brasil e, em tom premonitório, apontou os muitos ralos que sangram a Seguridade Social para concluir que era inadiável a reforma. Estávamos no governo Lula da Silva, que acabou legando um arremedo de reforma, incompatível com o que deveria ser feito concretamente. Hoje vivemos o atabalhoado governo de Jair Bolsonaro, que se orgulha em se definir ideologicamente como de direita, mas que, aos trancos e barrancos, ameaça legar uma reforma definitiva, contando com o indispensável concurso do Congresso Nacional, especialmente da Câmara, que até aqui, na gestão de Rodrigo Maia, tem oferecido avanços surpreendentes nessa questão.
Recorro a Lucia Hippolito na identificação dos ralos da Previdência. Ela foi didática: No Brasil, o rombo nas contas previdenciárias tem muitas origens, e uma das mais importantes são os inúmeros ralos por onde escapa o dinheiro recolhido por empresas e trabalhadores. Existem ralos que resultam das fraquezas do sistema, da falta de fiscalização generalizada e da falta de agilidade para corrigir as deficiências. São fraudes milionárias que se repetem ano após ano. Para cada Jorgina de Freitas que vai para a cadeia, outras centenas de fraudadores continuam a atuar impunemente na Previdência Social. Todo mundo sabe que é impossível acabar definitivamente com as fraudes, até porque a criatividade do ser humano quando se trata de burlar a lei é infinita. Mas o governo federal precisa aperfeiçoar os controles, para pelo menos reduzir as fraudes a limites administráveis.
Lucia Hippolito observava que há, também, ralos derivados da força daqueles que manipulam as regras a seu favor. Neste grupo estão empresas que conseguem isenções, como as famosas instituições filantrópicas, que conquistaram o direito de não recolher à Previdência. Não é à toa aduziu Hippolito que parte delas é chamada de pilantrópica, porque a malandragem é muito grande. Tudo dentro da lei, é claro. Pertencem ainda a esse grupo os devedores históricos da Previdência, que contratam grandes advogados, apelam à Justiça e empurram com a barriga o acerto de suas contas. Mas também existem aquelas categorias espertas de funcionários públicos que aproveitam brechas nas regras para engordar seus salários, com benefícios em cascata, artifícios que dobram as aposentadorias, isonomias conquistadas na Justiça. São funcionários administrativos de empresas estatais que recebem adicional de periculosidade, só porque alguns empregados dessas empresas, que realmente correm riscos, recebem esse benefício. São pensionistas de militares que nunca lutaram na Segunda Guerra Mundial, mas conseguiram isonomia com aqueles que enfrentaram o combate. Todas as vezes que o Poder Executivo tenta controlar esses abusos, a Justiça derrota o governo e manda pagar as aposentadorias especiais.
Diante dessa radiografia, a cientista política alertava estar na hora de começar a estancar a sangria. E insinuava que se a conjuntura pedia sacrifício, caberia aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dar o exemplo, começando a cobrar de quem deve, exercer uma fiscalização mais rigorosa e acabar com os privilégios na Previdência Social. Aí a sociedade vai entender que o sacrifício é de todos, arrematou Lucia. Ninguém está iludido quanto à perspectiva de termos, agora, no governo Bolsonaro, uma reforma de excelência. Mas há a expectativa de que se terá a reforma possível nas condições de temperatura e pressão com que se move a sociedade. A reforma é urgente porque pode trazer melhor qualidade de vida e avanço dos sistemas de saúde. Com isso, as pessoas vivem mais tempo. Mas há a consciência de que o assunto não é fácil de ser encaminhado, nem aqui, nem em qualquer outro país do mundo.
Na França, como lembrou Lucia Hippolito, a previdência privada foi reformada em 1995, depois da reunião de mais de um milhão e meio de manifestantes nas ruas, com duas greves importantes. Na Áustria, que reuniu um milhão de pessoas em manifestações de rua, o tempo mínimo de contribuição, que era de 40 anos, passou a ser de 45 anos mas a transição iria se estender até o ano de 2028. A Itália, por sua vez, realizou quatro reformas em 20 anos e ainda não conseguira aumentar a idade mínima para a aposentadoria, nos primórdios dos anos 2000. Isto quer dizer que as reformas são partos com dores, pela complexidade de interesses que têm de ser atendidos. Ou seja, são reformas difíceis, mas não impossíveis. O Brasil, que pelo menos em lei aboliu a escravidão, precisa resolver a questão da Seguridade num ritmo mais veloz do que espera a sociedade há bastante tempo.
Nonato Guedes