Ao ensejo dos 50 anos do Jornal Nacional, o principal noticioso da televisão brasileira, é inevitável que venham à tona episódios referentes à cobertura jornalística da Rede Globo em eventos de repercussão na sociedade e que seja colocada em pauta a postura ambígua das Organizações do doutor Roberto Marinho em alguns momentos cruciais da história recente do Brasil. Ontem, o site Os Guedes destacou a polêmica gerada em torno da fraude da Proconsult nas eleições de governador do Rio em 82, com o intuito de prejudicar o candidato Leonel Brizola, que acabou ganhando e tomando posse, e a edição no JN do debate em segundo turno, na eleição presidencial de 89, entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a favorecer Collor, que o doutor Roberto Marinho preferia a Lula, da mesma forma como jamais absorveu a liderança e as ideias de Brizola.
No caso das diretas-já, cabe lembrar que em 1983, ainda durante o governo do general João Batista Figueiredo, com a ditadura vomitando os primeiros estertores, partiu do Congresso uma iniciativa para tentar acabar com a farra dos biônicos que se sucediam no poder (generais sem voto investidos no papel de mandatários da República). Em março daquele ano, o então deputado federal Dante de Oliveira, do PMDB do Mato Grosso do Sul, apresentou a Proposta de Emenda Constitucional número 5 prevendo a restauração das diretas para presidente. Esse fato foi o estopim do movimento que carregava essa bandeira e que varreria o Brasil realizando grandes manifestações pela causa, como relatam Anna Beatriz Anjos e Igor Carvalho numa circunstanciada matéria sobre a Globo na revista Caros Amigos.
As primeiras manifestações pró-diretas foram ignoradas pela Globo, que simplesmente não as noticiou em seus telejornais de rede. Em 25 de janeiro de 1984, entretanto, cerca de 300 mil pessoas invadiram a Praça da Sé, em São Paulo, para reivindicar o direito de escolher o chefe do Executivo, no evento que inaugurou grandes comícios. O episódio havia sido amplo demais para não ser mencionado. A estratégia adotada pelo grupo de Roberto Marinho consistiu em manipular a cobertura. Festa em São Paulo: a cidade comemorou seus 430 anos com mais de quinhentas solenidades. A maior foi um comício na Praça da Sé, disse o então âncora do Jornal Nacional, Marcos Hummel, na chamada da matéria sobre o ato. Os repórteres de Caros Amigos relatam, então:
A descarada manobra não passou batida e provocou inúmeras críticas à Rede Globo, que por tempos empregou a tática de negar as acusações, como no livro Jornal Nacional A Notícia Faz História, escrito em comemoração aos 35 anos do periódico, em 2004, no qual alega que a emissora vinha sendo pressionada pelos militares a não cobrir o evento. Aos autores da obra, José Carlos Bonifácio Sobrinho, o Boni, ex-vice-presidente das organizações, disse que não foi possível fazer a cobertura de maneira adequada. Em 2005, porém, o próprio Boni admitiu a ocorrência do que chamou de dupla censura ao comício da Sé: Primeiro, uma censura da censura; depois, uma censura do doutor Roberto, explicou, em entrevista ao jornalista Roberto DAvila. A emissora só entraria na cobertura nacional na reta final do movimento, no comício de 1 milhão de pessoas na Candelária, no Rio de Janeiro, em abril de 1984.
A ambiguidade de comportamento da Rede Globo foi estimulada pelo receio do doutor Roberto Marinho e seus companheiros de diretoria quanto a represálias que viessem a ser adotadas pelo regime militar, como, por exemplo, a retirada da concessão para o complexo dos Marinho operar a rede de TV. A bem da verdade, porém, diga-se que a ampliação da cobertura jornalística foi se dando à proporção que o movimento ganhava visibilidade nas ruas. Ficou evidente, naquele momento, para a cúpula da Globo, que a ditadura militar estava praticamente no chão, faltando apenas o empurrão decisivo para sair de cena. Como resultado daquela mobilização, deu-se a ida das oposições ao colégio eleitoral (por via indireta) com a candidatura de Tancredo Neves, batendo de frente com a de Paulo Maluf, expoente máximo do regime prestes a decair.
Tancredo ganhou no Colégio Eleitoral, contando com os votos de dissidentes da Arena, o partido de sustentação da ditadura. Formou a Aliança Democrática em nome de causas nobres, como a restauração da democracia no país. Infelizmente, Tancredo não teve condições de saúde para tomar posse na cadeira de presidente, que foi ocupada por José Sarney, frustrando as expectativas da sociedade brasileira. A esta altura, a volta da democracia já estava a caminho, e a Globo, oportunisticamente, tentou pegar carona no embalo das ruas, sofrendo hostilidades que ficaram expressas no bordão: O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo. Esta foi a história!
Nonato Guedes