Linaldo Guedes
“Você já me perguntou isso anos atrás e eu respondi, mas respondi meio por alto, e entendo que você não se lembre. Vou contar agora a história completa.
“Essas coisas fogem da memória, e quando voltam, voltam com pedaço faltando. A gente tem que ficar checando de novo, completando as versões, e no fim é como pegar um lençol esburacado e remendar com retalhos de outras cores. O que importa é que o lençol pareça inteiro de novo.
“Foi num tempo distante do passado, que você nunca viu nem vai mais ver. Campina Grande era outra cidade, sem essa violência absurda de hoje, em que você corre o risco de perder a vida porque um moleque drogado toma teu celular e te dá um tiro sem a menor necessidade, ou porque um pitboy endinheirado bate no teu carro e vem tomar satisfações. (…)”
Este acima é apenas um trecho de um conto do escritor Braulio Tavares. E, se vale uma sugestão, leia-o ouvindo a famosa canção brega “Se meu amor não chegar”, de Carlos André. O conto, intitulado “Eu hoje quebro essa mesa”, integra a coletânea organizada pelo escritor Bruno Gaudêncio e lançada pela Editora Penalux, “Torturas de amor”, que reúne 12 contos de 12 autores nordestinos baseados em clássicos da chamada música brega.
É um livro para se ler ouvindo as seguintes canções: “Eu vou tirar você deste lugar” (gravada por Odair José), “Fuscão preto” (gravada por Almir José), “A Beleza da Rosa” (gravada por José Ribeiro), “Se meu amor não chegar” (de Carlos André), “Garçom” (gravada por Reginaldo Rossi), “Tortura de Amor” (gravada por Waldick Soriano), “A Cruz que carrego” (gravada por Evaldo Braga), “Você é doida demais” (Lindomar Castilho), “Eu não sou brinquedo” (Genival Santos), “É impossível acreditar que eu perdi você” (Márcio Greyck), “Eu não sou cachorro não” (Waldick Soriano) e “Entre espumas” (Roberto Muller).
São canções para se ouvir lendo os contos de Adrianne Myrtes, André Balaio, Astier Basílio, Bráulio Tavares, Bruno Azêvedo, Débora Ferraz, Joana Belarmino, Kátia Borges, Ricardo Kelmer Roberto Menezes, Tiago Germano e Vanessa Trajano.
A sinopse do livro explica com clareza a proposta da obra. “Torturas de Amor – contos de autores nordestinos baseados em clássicos da música brega” é uma coletânea de narrativas curtas dedicadas a um estilo musical que até hoje é sinônimo de mau gosto. No auge de sua repercussão, ocorrido nas décadas de 1970 e 1980, havia por parte das gravadoras uma visão do qual eram denominados os chamados artistas de prestígio e artistas comerciais. Em muitos casos as vendas do segundo grupo bancavam as experimentações estéticas do primeiro.
No primeiro grupo estavam os chamados medalhões da Música Popular Brasileira (MPB), a exemplo de Chico Buarque de Holanda, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento. No segundo grupo, artistas populares, como Evaldo Braga, Waldick Soriano, Odair José, Lindomar Castilho, entre outros. E são justamente as algumas canções compostas e gravadas por este segundo grupo, chamados de bregas, que inspiraram alguns dos principais contistas nordestinos dos últimos tempos, no arranjo desta coletânea inédita de contos.
O campinense Bruno Gaudêncio, organizador da obra, disse a este colunista que há uma tendência, de uma ou duas décadas para cá, da realização de trabalhos que relacionam música e literatura, principalmente a publicação de coletâneas de contos a partir de canções. Beatles, Noel Rosa, Renato Russo, Chico Buarque, por exemplo, já tiveram projetos neste sentido.
– Como desde criança escuto brega brasileiro-nordestino, é perceptível o lado narrativo das canções gravadas por nomes como Genival Santos, Odair José, Fernando Mendes, Reginaldo Rossi, entre outros. A maioria artistas nordestinos e bastante marginalizados dentro da história da música brasileira. Então, juntei o útil ao agradável. Pensei: que tal casar contistas nordestinos com algumas destas canções? Veio a ideia – detalha.
Segundo Bruno, tanto os autores como a editora adoraram a proposta desde o início. “O próximo passo agora é conquistar os leitores”, enfatiza. Digamos que já conquistou. Pelo menos esse escriba, que soube que saiu um também, só que apenas digital, com contos baseados em canções de Raul Seixas. Parece que a moda pegou, então. O livro “Torturas de Amor” tem 130 páginas e está sendo vendido no site da editora Penalux à R$ 37,00.
Enquanto não banalizam a nova onda, você pode ir agora na vitrola, colocar “É impossível acreditar que perdi você”, com Márcio Greyck, e ler o seguinte trecho do conto de Roberto Menezes:
“Ontem sonhei. Eu não tinha mãos. Eu não tinha pés. Eu não tinha braços. Eu não tinha pernas. Eu não tinha boca. Eu não tinha nariz. Eu não tinha olhos. Eu não tinha pau. Neste meu sonho de ontem, eu tinha um saco, um par de testículos que pesava uma tonelada e coçava.
“Quando acordei desse sonho, num movimento mecanizado, pensei em levar não só uma das mãos, mas as duas em auxílio ao meu saco querido. E digo mais, o foco mental que brotou logo após acordar vindo da urgência em socorrer o meu saco foi tão intenso que tensionei os meus pés na mesma direção. E minhas pernas e minha boca e meu nariz e meus olhos. Mas nem precisei de tanto esforço. Quando acordei minhas duas mãos já estavam lá. Não sei desde quando minhas unhas coçavam o meu saco precioso. É certo que eu tenha acordado por esse motivo, a pele do meu saco estava em carne viva. Ao me ver naquela situação, parei de coçar na mesma hora”.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e texto em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.